Elas raramente entram em pista, em uma competição dominada por ginetes homens. O nome delas por vezes não aparece entre os expositores, pois boa parte das cabanhas tem patriarcas como proprietários. Mas, por trás de muitos finalistas do Freio de Ouro, que ocorre no próximo final de semana, durante a Expointer, está o trabalho de mulheres – que vêm ganhando espaço na raça crioula com resultados que vão de títulos em competições ao desenvolvimento de genética de ponta. Tudo motivado por um sentimento que não tem gênero: a paixão pelos animais.
– As mulheres foram pegando gosto e vendo que há muito espaço. É algo que está ocorrendo naturalmente – diz Elisabeth Amaral Lemos, 71 anos, única mulher a assumir a presidência da Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Crioulo (ABCCC) em 87 anos de história.
À frente da entidade de 2000 a 2003, a criadora atribui o espaço conquistado pelo sexo feminino nos últimos anos à evolução da sociedade e também ao ambiente acolhedor proporcionado pelos criadores homens.
– Estamos falando de uma família crioulista, onde as mulheres sempre desempenharam papel muito importante, dentro e fora das pistas – afirma Elisabeth.
A presença delas nas competições da raça começou a ser incentivada na década de 1990, com a criação das primeiras provas femininas. Até hoje, duas ginetes chegaram à final do Freio de Ouro: a gaúcha Eliana Sussenbach Vaz e a uruguaia Soledad Ferreira. Primeira secretária da ABCCC, a criadora Márcia Linhares, diretora da GAP Genética, de Uruguaiana, incentiva novas gerações a assumirem as rédeas de criação, seleção e administração dos negócios, baseada em sua experiência:
– As mulheres saíram dos bastidores. Temos muitos exemplos de sucesso que mostram que as nossas características vão muito além da sensibilidade feminina.
Irmãs conduzem trajetória de campeãs
Na Estância Vendramin, em Palmeira (PR), as três filhas do proprietário, Aldo Vendramin, tocam os negócios da criação de cavalos crioulos – iniciada há 15 anos. De lá para cá, por coincidência ou não, as grandes campeãs da cabanha também são fêmeas. O ícone da geração vencedora é a égua Oraca do Itapororó – Freio de Ouro em 2013, tricampeã da Expointer em morfologia e melhor exemplar da raça em 2007, 2012 e 2013.
– A Oraca foi um divisor de águas para nós. Ela era uma potranquinha quando chegou na propriedade. Foi lapidada dentro de casa – lembra Victória, 28 anos, filha do meio de Vendramin.
Cega de um olho, o que dificulta o desempenho nas provas funcionais, Oraca fez história na raça crioula também ao alcançar a primeira e única nota 10 do circuito na morfologia.
– Estamos trabalhando para fazer outras Oracas. E ela segue vivíssima, tem um piquete enorme, é supermimada por todas nós – conta Victória, formada em Medicina Veterinária.
Outra fêmea vencedora é a Divisa de Los Campos, que conquistou em 2012 o Freio de Ouro da Federação Internacional de Criadores de Cavalos Crioulos (FICCC) – considerada a copa do mundo da raça crioula. Em 2014, a égua ganhou o Freio de Prata em Esteio.
– Esse animal nasceu e foi criado na estância, o que nos orgulha muito – diz Victória, responsável pela área de marketing da propriedade.
A irmã mais velha, Cacau, 34 anos, também veterinária, mora na fazenda e cuida da parte técnica dos animais. Junto com o marido, Cadu Altenhofen, ela também administra a criação de gado de corte e a produção de grãos. A irmã mais nova, Beatrice, 25 anos, advogada, ajuda em questões jurídicas e de marketing. Completa o quarteto feminino a mãe, Noeli Vendramin, que, mesmo morando em Curitiba com o marido, empresário do setor de tecnologia, se envolve com os negócios rurais.
– A paixão pela raça crioula, que começou pelo nosso pai, se multiplicou por toda a família. Hoje, é difícil saber quem de nós gosta mais dos cavalos – resume Victória, uma das herdeiras da estância, que neste ano estará na final do Freio com dois animais.
Herança genética transformada em grife
Pelo sexto ano consecutivo, um criatório liderado por mulheres será o maior expositor de equinos crioulos da Expointer – serão 15 animais entre a morfologia da raça e as provas do Freio de Ouro. A Cabanha Basca, de Uruguaiana, na Fronteira Oeste, é administrada pela pecuarista Mariana Franco Tellechea, 55 anos, e pela filha Lilinha Tellechea Pinto, 35 anos.
A expertise no desenvolvimento de genética de ponta vem de berço, herdada do patriarca da família, Flávio Bastos Tellechea, falecido na década de 1990. Os animais da marca BT, oriundos do condomínio Bastos Tellechea, acumulam o maior número de títulos na competição: são 36 Freios – entre Ouro, Prata, Bronze e Alpaca –, em 37 anos da prova. O afixo que virou grife na raça crioula em todo o país tem também mais de 50 títulos em exposições morfológicas de Esteio.
A trajetória de pódios da marca BT foi perpetuada pela viúva, Lila Franco Tellechea, hoje com 86 anos, e pelas filhas Mariana e Maria da Glória. Após a divisão do condomínio empresarial familiar, em 2010, Mariana deu continuidade à criação de animais na Cabanha Basca, ao lado da filha Lilinha – terceira geração da família.
Mãe e filha buscam agora o primeiro Freio de Ouro da cabanha – seguindo os passos do patriarca. Até hoje, o melhor resultado na competição foi a sétima colocação com uma égua, conquistada por duas vezes.
– Teremos três animais na final da competição, um deles Bocal de Bronze deste ano, a Basca Anita-TE. Os animais, preparados em centros de treinamentos, chegam a Esteio em ótimas condições para competir e disputar o pódio – afirma Lilinha, formada em Administração e com pós-graduação em Comunicação.
Sobre o trabalho da família, liderado por três gerações de mulheres desde a década de 1990, afirma que a igualdade de gênero foi alcançada nos resultados conquistados em pista ao longo dos anos:
– Não existem mais barreiras, somos muito respeitadas. E isso é fruto do nosso trabalho, da nossa capacidade, que transcende a questão de gênero.
Desejo do pai virou paixão das filhas
Da vontade do produtor rural Sérgio Sant'Anna de aproximar as filhas do meio rural na infância nasceu a paixão que se tornaria a profissão das irmãs Cláudia, 35 anos, e Fernanda, 32 anos. Veterinária, a irmã mais velha, e atleta de hipismo, a mais jovem, assumiram a Cabanha Mapocho, em Pelotas, ao lado da mãe, Maria Aparecida, após a partida precoce do pai, em 2011.
– Na verdade, a sucessão começou cinco anos antes, quando me formei, em 2006. Na época, ele já estava doente e se preocupava muito em nos preparar para o futuro – lembra Cláudia.
Foram mãe e filhas que incentivaram Sant’Anna a investir na criação de cavalos. Até o começo dos anos 2000, o produtor priorizava a compra de machos para competir em provas.
O primeiro título veio em 2001, quando o cavalo BT Hebreu, comprado cinco anos antes, conquistou o Freio de Bronze em Esteio.
– Meu pai começou a investir como competidor, e não como criador. A primeira égua, a pedido da minha mãe, foi comprada em 1997 – conta Cláudia.
Os resultados da genética começaram a ser colhidos nos últimos anos. Em 2015, a égua Hermosa Mapocho foi a primeira criada em casa a chegar à final do Freio de Ouro. Em 2018, a Orquídea Negra Mapocho alcançou o melhor desempenho da cabanha ao conquistar o sexto lugar entre as fêmeas. Classificada para a grande final deste ano, a fêmea disputará o título novamente.
– Nosso pai era mais conhecido como competidor da raça e hoje nós somos reconhecidas também pela genética – compara Cláudia, que orgulha-se da trajetória do patriarca, que também criava gado de corte e produzia arroz – atividades mantidas até hoje pela família natural de Porto Alegre.
A presença feminina na raça crioula inspirou Cláudia a criar o leilão Somente Elas, realizado em abril, no parque Assis Brasil, em Esteio. O remate ofertou 39 lotes de uma seleção feita por 19 mulheres e 20 criatórios.
– Quando começamos a identificar as criadoras, nos demos conta da quantidade de mulheres na raça. O resultado nos surpreendeu – conta a empresária, que pretende repetir o projeto.