Naira Hofmeister, especial
Nos campos da Campanha do Rio Grande do Sul, costuma-se falar que a raça crioula, cujos melhores exemplares são premiados anualmente no Freio de Ouro, durante a Expointer, deve sua trajetória e reconhecimento a duas origens: um cavalo e um homem. O cavalo se chamava La Invernada Hornero, veio do Chile em 1976 e, cruzando com éguas de origem uruguaia, fundou uma linhagem que consagrou as características morfológicas e de temperamento que marcam a tradicional espécie gaúcha.
O homem se chama Vilson Chalart de Souza, mais conhecido como o primeiro campeão da história do Freio de Ouro, em 1982, mas cujo legado para a raça crioula vai muito além das medalhas.
Enquanto os genes de La Invernada Hornero trabalharam em sucessivas gerações para tornar o cavalo crioulo esse exemplar rústico, e ao mesmo tempo dócil — perfeito para a lida campeira —, Souza incidiu sobre a inteligência dos bichos: moldou sua habilidade através da doma, fazendo aflorar as características que tornam o animal ágil e preciso, “funcional”, no dialeto da gauchada. Somando a isso, a elegância no estilo, sistematizou o “jeito gaúcho de montar”, dando uma contribuição central para a cultura campeira.
— O que ele fazia era bruxaria, deixava a peonada tudo de queixo caído, desde o mais rude ao mais polido. O cavalo é uma ferramenta bruta, aguenta distâncias, o rigor inverno. Mas os dele, faziam isso com harmonia, não só com a beleza, que é da raça. Como o Vilson, ginete e cavalo eram um conjunto ereto, parecia mesmo um centauro — compara Oswaldo Pons, amigo e dono da Cabanha Tupambaé, que nasceu do encontro entre Souza e a linhagem de La Invernada Hornero.
O primeiro título
Era um dos descendentes do mítico cavalo chileno que Vilson Souza montava em 1982, quando venceu a primeira competição do Freio de Ouro, na Expointer. Itaí Tupambaé foi a geração pioneira da cabanha de Oswaldo Pons.
Nascido da cruza de Hornero com a potranca Preciosa dos Cinco Salsos, levou o primeiro lugar em maio daquele ano, consagrando o concurso que revolucionou a forma de avaliação do cavalo nas competições de feiras agropecuárias. Enquanto o habitual era levar os animais “à cabresto”, puxados pelas rédeas para um julgamento meramente morfológico, o Freio de Ouro introduziu a disputa em movimento, com os cavalos montados, imitando tarefas que devem desempenhar na estância.
Na memória de Vilson Souza o sentimento daquela vitória está tão fresco que, tendo recordado o momento centenas de vezes em entrevistas ao longo de seus 85 anos, o ginete não consegue evitar a voz embargada ao contar a recordação uma vez mais.
O que ele fazia era bruxaria, deixava a peonada tudo de queixo caído, desde o mais rude ao mais polido. O cavalo é uma ferramenta bruta, aguenta distâncias, o rigor inverno. Mas os dele, faziam isso com harmonia, não só com a beleza, que é da raça.
OSWALDO PONS
Proprietário da Cabanha Tupambaé
— Na final de 82, ficou o Itaí Tupambaé peleando com a Chacay Sombra, e ele saiu vencedor. Foi maravilhoso quando me tiraram de cima do cavalo; uns que gritavam, outros que choravam, foi emocionante… talvez mais por ser o primeiro Freio de Ouro — lembra.
Além de estar fazendo história e marcando a raça crioula para sempre, aquela vitória de Itaí Tupambaé era improvável. Ele era ainda um cavalo muito jovem, um bagual, e tinha apenas 40 dias de doma quando participou da primeira classificatória, em Jaguarão. Não havia sequer colocado os freios, e sobre o focinho usava um bocal de couro — etapa prévia à conclusão do treinamento. Mas o patrão disse a Souza que todos os competidores estariam no mesmo nível e o convenceu a se apresentar.
— Só que quando cheguei em Jaguarão os cavalos eram mais velhos e todos estavam de freio, prontos. O único de bocal era o Itaí, e ele ganhou — recorda Souza, que foi o primeiro também nisso, a classificar um animal de bocal, feito nunca repetido na história da competição.
Influência para gerações
Os movimentos executados pela dupla formada por Itaí Tupambaé e Vilson Souza naquele maio de 1982 pautaram para sempre os concursos da raça crioula.
— O Freio de Ouro evoluiu muito tecnicamente, as regras mudaram, mas a equitação do seu Vilson, com leveza, suavidade e firmeza, é arte pura e permaneceu como modelo — explica o jornalista Renato Dalto, autor do livro “Freio de Ouro - uma história a cavalo” (2007), e do documentário homônimo.
Esse resultado foi conquistado graças a inovações que Souza implementou na lida com o cavalo. Os arreios, por exemplo, que eram habitualmente atados no meio da barriga do animal, ele trouxe para a frente do corpo, colados ao peito.
— Isso permite que o ginete sente sobre centro de gravidade do cavalo, aliviando o peso sobre o rim, trazendo fôlego, resistência e mais leveza ao conjunto — explica Dalto.
Foi estimulando essas mesmas qualidades em outros cavalos que Souza se tornou um multicampeão. Venceu cinco vezes o Freio de Ouro, ganhou também um Freio Internacional e tem ainda quatro medalhas de prata e duas de bronze. Em 1992, levou as três medalhas do concurso montando cavalos diferentes.
Sua lista de feitos singulares inclui ainda o único caso de dois cavalos irmãos inteiros a vencerem a disputa. Foi em 1990, quando Nobre Tupambaé — cria de Preciosa e La Invernada, assim como Itaí — ganhou o concurso com Souza como ginete.
Conquistas
Freio de Ouro
- Cinco vezes campeão (anos 1982, 1985,1990, 1992 e 1993)
- Quatro medalhas de prata (anos 1991,1992, 1995 e 2001)
- Duas de bronze (anos 1990 e 1992)
Freio de Ouro Internacional
- Medalha de ouro (em 1992)
De campeão a treinador
Vilson Souza também repassou suas técnicas a outros ginetes e se tornou um treinador respeitado no meio, outra maneira de alcançar novas marcas. Preparando durante dois anos Eliana Süssenbach Vaz, ele viu a pupila ser a primeira mulher a disputar uma final do Freio de Ouro, em 1994, e a vencer uma etapa classificatória do concurso. O cavalo era mais um da linhagem de La Invernada e se chamava Relâmpago Tupambaé.
— O plano era fazer um treinamento de um mês, que viraram dois anos e trouxeram, além das conquistas, um belo vínculo de amizade e admiração entre nossas famílias — diz a pioneira, hoje médica e criadora de cavalos crioulos.
Além de criar parâmetros que nunca mais foram abandonados no Freio de Ouro, Souza é reconhecido por ter consolidado o estilo de montaria campeira do Rio Grande do Sul, com o animal permanentemente em uma postura “recolhida”, com apoio sobre as patas traseiras, e submisso à vontade do ginete.
— Sua influência fez com que esse jeito resistisse à mudanças e pressões de outros modelos de equitação: o clássico ou o western — exemplifica o Francisco Fleck, presidente da Associação Brasileira do Cavalo Crioulo (ABCCC).
O domador improvável
Quando ganhou o primeiro Freio de Ouro, em 1982, Vilson Souza não era mais nenhum guri. Nascido em 12 de maio de 1934, estava com 48 anos e tinha, atrás de si, toda uma vida dedicada ao campo. Mas ele não era um domador ou ginete especializado. Na verdade, até aquele momento, Souza era apenas um administrador de estância, trabalhava para a família Pons, primeiro em Uruguaiana, depois em Bagé. Ele nem gostava do cavalo crioulo, que considerava muito lento em comparação às raças de corrida com que lidava habitualmente.
Foi a égua Amarela que mudou essa trajetória. Irmã de Preciosa dos Cinco Salsos, que deu à luz aos campeões Itaí e Nobre, Amarela acabou em suas mãos por uma dessas razões que só o destino pode explicar. Foi a primeira potranca da Cinco Salsos a ser comprada pela família Pons, e Oswaldo, que era então um jovem de vinte e poucos anos, queria que ela simbolizasse uma modernização da raça crioula. Por isso, não recorreu a domadores tradicionais, dando a Souza a oportunidade de mostrar um talento até então desconhecido.
— O Vilson sempre teve sensibilidade para montar cavalos bons, ágeis. O crioulo na época era mais devagar, um pouco apático. Então com a entrada dessa égua, e a doma do Vilson, o crioulo ganhou esse sangue mais quente — resume Oswaldo.
Souza foi um autodidata. Nunca tomou lições formais de doma ou montaria, mas se valeu de ensinamentos que foi colhendo ao longo da vida em diferentes “escolas”. Começou ajudando o pai, um argentino que se fixou no Brasil como tratador de cavalos de corrida. Depois teve a passagem pela cavalaria do Exército, em que aprendeu princípios da equitação clássica, conhecendo embocaduras diferentes que facilitam dirigir o movimento do cavalo.
A forma de domar de Souza também era rara na época, porque ele não recorria à violência. Além das embocaduras, utilizava as pernas para mostrar aos cavalos o poder dos movimentos laterais — o que viraria uma marca da raça crioula nos anos seguintes. Ao invés do relho, ele se apresentava portando um rebenque chamado fusta, mais fininho e que mais conduz o bicho que o submete.
“O cavalo tem que entender”
Seu perfeccionismo era tamanho que chegava ao cúmulo de ensinar os seus cavalos a urinarem apenas em latas, para mostrar que eram capazes de aprender qualquer tarefa.
— Parecia que ele conversava com os cavalos. Nunca vi ele dar um laçaço estúpido, corrigir de forma agressiva. Estudava a personalidade de cada cavalo, e dizia que nenhum era burro, burro era o homem que não entendia a sensibilidade deles — recorda Oswaldo Pons.
Perguntado sobre essa técnica de domar, Souza faz pouco caso do que outros classificam como genialidade:
— Seria fácil se a gente pudesse dizer pro cavalo: fazes assim, assim, assim. Como não dá, se torna difícil. Mas o cavalo tem que entender o que o domador e o ginete pensam — resume, como se fosse fácil, o maior mito dos 37 anos do Freio de Ouro.
Montado aos 85 anos
— A verdade é que ele tem o dom. É como o gaiteiro, ou sabe tocar de ouvido, ou não vai adiante com o instrumento. É até difícil de explicar, sei lá, o movimento, o olhar dele, o jeito que ele para — tenta definir Renato Dalto, um jornalista que fica sem palavras diante do fenômeno.
Em 2001 Souza encerrou sua trajetória como competidor dos concursos de cavalo crioulo. Se despediu com o Freio de Prata, aos 69 anos. Treinou dezenas de ginetes e preparou tantos cavalos quanto pôde, até que, em 2006, sofreu um acidente vascular cerebral que lhe limitou os movimentos do lado direito do corpo. Quando completou 85 anos, Bagé lhe homenageou com uma exposição sobre sua trajetória. Também empresta seu nome a um núcleo de criadores de cavalos crioulos no Rio de Janeiro, a maneira que o presidente
André Luis Vaz Machado, que desde criança frequentou a casa de Souza, encontrou de homenageá-lo:
A verdade é que ele tem o dom. É como o gaiteiro, ou sabe tocar de ouvido, ou não vai adiante com o instrumento. É até difícil de explicar, sei lá, o movimento, o olhar dele, o jeito que ele para.
RENATO DALTO
Jornalista
— O maior legado que ele deixa para todos nós é o exemplo de caráter e humildade. Somos pura gratidão.
Hoje mora com o neto, Pablo Alves, no centro da cidade, mas não deixa de ir à estância semanalmente e ainda monta a cavalo. Vai estar na 42ª Expointer, e, estimulado, é capaz de citar versinhos dos poemas de Jayme Caetano Braun que ele viu serem compostos na sua barraca do acampamento ou ao redor do fogo nas churrascadas de celebração de vitórias:
— Não esqueçam de Esteio/ daqui até o dia 9/ que é quase certo que chove/ mas é o concurso do Freio/ É o mais lindo torneio/ de treino e rocinamento/ onde a perícia e o talento/ do que doma e rocina/ tirando um fiapo de crina/ para tornear um pensamento — declama.