Na proposta de reforma da Previdência, apresentada pelo governo Bolsonaro há pouco mais de uma semana, duas questões tocaram sensivelmente no campo: o fim da diferença de idade entre homens e mulheres e o valor mínimo de contribuição de R$ 600 por ano — independentemente da quantia comercializada.
A avaliação é de que não há sentido em manter a distinção na cidade e acabar no meio rural, onde são mais comuns as jornadas duplas, ou até mesmo triplas das mulheres. Sobre a contribuição fixa, o entendimento é de que penalizará justamente os pequenos produtores, que acabarão contribuindo com percentual maior do que hoje — quando o desconto é feito apenas sobre vendas efetivas.
De acordo com o governo federal, as mudanças são necessárias porque, somente no ano passado, a previdência rural custou R$ 114 bilhões aos cofres públicos — e a arrecadação pagou menos de 10% desse valor (R$ 10 bilhões). Na avaliação da advogada Jane Berwanger, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, a contribuição desvinculada da receita acabará gerando injustiças:
— Para ficar na faixa de 1,3% de contribuição, o produtor terá de ter faturamento anual superior a R$ 46 mil. Existem realidades muito distintas dentro da agricultura familiar, muitos faturam facilmente isso, muitos não.
Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), Aristides Santos também critica a exigência de contribuição mínima anual:
— Quase a metade dos agricultores familiares do país estão no Nordeste, a maioria em condição de subsistência, em minifúndios. Muitos nem conhecem o talão do produtor.
Passados 30 anos da Constituição, última atualização do regime previdenciário, o consultor legislativo do Congresso Pedro Fernando Nery entende que é necessário atualizar as regras.
— É complicado ter na mesma proposta a alíquota de 22% sobre os grandes salários do funcionalismo e a situação do rural que sequer comercializa sua produção — afirma Nery, autor do livro Reforma da Previdência – Por que o Brasil não Pode Esperar.
Grande parte dos trabalhadores no campo são segurados especiais: exercem atividade individual ou apenas com ajuda da família na propriedade.
Sem diferença de gênero no campo
Enquanto na contribuição mínima surgem argumentos contrários e favoráveis, sobre o fim da diferença de gênero o entendimento comum é de que não há explicação para acabar com a distinção entre os aposentados rurais (60 anos para homens e mulheres) e manter na cidade (65 para homens e 62 para mulheres).
— A diferenciação da idade da mulher era um tema caro ao presidente, não está claro por que não há distinção para a mulher do campo — avalia Nery.
Para Lérida Pivoto Pavanelo, coordenadora estadual das mulheres na Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag), a mudança proposta é um retrocesso de uma conquista muito recente para o trabalho feminino.
— As mulheres só ganharam o direito da aposentadoria rural a partir da Constituição de 1988. Até então, tinham direito a apenas meio salário mínimo e se ficassem viúvas — lembra.
O principal argumento é a retirada de um direito de quem começa a trabalhar mais cedo e passa a vida se dividindo entre a lida rural e o cuidado da casa e dos filhos. Aos 53 anos, Neide Brustolin soma mais de 40 anos de atividade no campo. Começou criança, quando ajudava o pai a lavrar a terra onde a família cultivava uvas no Vale do Caí.
— Me criei na roça, sem hora para trabalhar e sem fim de semana para descansar — conta Neide, produtora de morangos, goiaba e uva ao lado do marido e da filha, em Bom Princípio.
Pelas atual regra, Neide se aposentaria em dois anos. Se as alterações forem aprovadas, entrará nas regras de transição (veja abaixo). A produtora teme que as mudanças desestimulem a filha Daniela Brustolin Backes, 24 anos, formada em Agronomia, a ficar na propriedade — onde além da produção e colheita, a família embala e entrega produtos na região.
— Ela vê a gente trabalhar duro e não ser reconhecido. Hoje, ela está aqui. Amanhã, não sabemos — lamenta Neide.
Segundo especialistas, as proposições podem ser um bode na sala, ou seja, o governo lançou propostas controversas para serem usadas como moeda de troca na negociação de pontos considerados fundamentais na reforma. A ideia foi reforçada pelo presidente Jair Bolsonaro. Em reunião com jornalistas na última quinta-feira, ele admitiu que existem algumas “gorduras que a gente pode rever”.