O 19 de novembro marcou o Dia Mundial do Empreendedorismo Feminino, data estipulada há uma década pela Organização das Nações Unidas (ONU) na ideia de fazer pensar sobre os desafios desta empreitada. Para refletir sobre a data, Donna conversa com a empreendedora Soraia Schutel, 44 anos, cofundadora da escola de líderes Sonata, empresa com sede em Porto Alegre que oferece formações para o Brasil e o mundo. Inaugurada em 2015, a escola tem como objetivo formar líderes mais conscientes, intuitivos e humanos.
Há alguns anos, a bagagem como pesquisadora, empreendedora e executiva fez Soraia perceber a existência de uma lacuna no mercado quando o assunto era educação em gestão, que focava muito no aspecto de conteúdo e deixava de lado outras partes importantes do ser humano. A criação da Sonata, junto da sócia Natalia Leite, veio para preencher esse vazio. Soraia é doutora em Administração pela UFRGS, pesquisadora na linha de educação de lideranças para o desenvolvimento sustentável no futuro, pós-graduada em Psicologia e especialista em Liderança pela Harvard e a Schumacher College.
— Pesquisei durante quatro anos o fato de que não adianta a gente desenvolver lideranças somente do ponto de vista racional, é preciso desenvolver as outras inteligências, sobretudo emocional, relacional e espiritual, que diz respeito a ter um sentido maior na vida, propósito, conexão com o meio. Para que um desenvolvimento sustentável ocorra, é preciso criar um ser humano que se autossustente em todos os pilares, não só do ponto de vista financeiro. Ele precisa conhecer as suas emoções e entender que uma ação sua reflete no todo. Para isso, precisávamos de novos métodos, os quais fomos construindo — explica.
A Sonata se denomina "a primeira escola de liderança que tem a arte como principal ferramenta", isso porque as suas aulas se utilizam de análise de obras de grandes pintores e escultores, além de filmes, sabedorias ancestrais e filosofia para refletir sobre liderança, gestão e sobre a vida interior de cada um. Há cerca de três anos, Soraia e Natália foram além: criaram o Clube Soul, uma formação exclusiva para mulheres que já impactou cerca de 700 participantes e serve como uma rede feminina de apoio e contatos.
— Desenvolvemos programas específicos para mulheres porque elas estão no centro do desenvolvimento sustentável. Uma mulher livre em aspectos psicológicos e financeiros gera impacto na vida das pessoas. A primeira coisa que ela vai fazer ao ter sucesso não é comprar o carrão do ano. Não, uma mulher com dinheiro na mão e autonomia psicológica contribui com a sua comunidade, a sua família e as pessoas ao seu redor — detalha Soraia, citando a pesquisa de Muhammad Yunus, Nobel da Paz em 2006.
Quais benefícios o empreendedorismo traz para mulher e sociedade?
Empreender é um dos melhores jeitos de a mulher construir a própria liberdade com as próprias mãos. Também é uma escola de autoconhecimento, porque a empresa é um reflexo da empreendedora. Quando algo não funciona, é porque há algo que precisa ser aprimorado primeiro como ser humano para que depois se reflita em gestão. Quando a gente ama muito o que faz, consegue unir propósito e capacidade em gestão e vê o sonho se tornar realidade.
O empreendedorismo traz uma realização existencial imensurável. Não é só sobre resultado financeiro, embora ele seja importante para a sustentação do negócio, mas é também sobre essa realização existencial.
Quais os principais desafios no empreender?
Quando a pessoa se apaixona demais por aquilo que entrega e não consegue enxergar os problemas daquele produto ou serviço. É preciso se desconectar para enxergar de fora e isso vale para tudo, para precificação, para entender o fit (encaixe, lugar) com o mercado etc. Outro desafio é estar atualizada com o nosso tempo, entender o que é inteligência artificial, as tecnologias.
A empreendedora precisa ser quase um polvo do ponto de vista do conhecimento, dominar a sua área, mas também entender de gestão, marketing, finanças, contabilidade, recursos humanos, jurídico e buscar conhecimento sobre o momento do mundo em que vivemos. E ainda reservar momentos para o descanso.
Vários dos seus cursos focam em autoconhecimento e autogestão feminina. Por que trabalhar esses pontos?
É necessário autoconhecimento para entender o futuro da própria organização. Temos de encontrar momentos para não perder o nosso centro. Uma pessoa pode sugerir "Vamos por aqui, essa é uma ideia genial!", mas a empreendedora tem de se questionar se aquilo faz sentido para o seu negócio e a sua vida, não se deixar levar por grandes modas do momento.
Isso se chama autogestão feminina porque quando falamos em carreira de sucesso — e cada uma vai ter o seu critério de sucesso —, é preciso primeiro olhar para dentro. Quanto mais centradas estamos em nós mesmas, mais isso gera reflexo na carreira e na empresa que queremos construir.
De que forma a arte ajuda a formar líderes?
Para fazer uma educação humanizada para líderes, é necessário mudar a forma, não dá para ser só técnica e números. Trazemos a arte porque ela resgata a sensibilidade e a humanidade dos nossos alunos. No passado, as lideranças eram formadas com base nas virtudes cardeais, que são "bom, belo, justo e verdadeiro", mas hoje há falta dessas virtudes na formação das pessoas.
A arte ativa a beleza, Dostoiévski já dizia que a beleza irá salvar o mundo, porque ver uma grande obra de arte é uma forma de terapia, já que a psique se nutre de "belo". Para ele, o contrário de beleza não é o feio, é a ausência de dignidade. Então, por exemplo, uma cidade bela, bem cuidada, arborizada traz dignidade para as pessoas e isso vale para a nossa vida e para as organizações.
Qual tipo de arte a sua escola ensina?
Usamos a análise de filmes e obras de arte para refletir sobre a gente, nossa forma de gestão, sobre a vida, sobre o sentido existencial. Também apostamos em conteúdos profundos, conectados à sabedoria ancestral, filosofia grega, estoicismo, arquétipos, liderança shakti, da Índia, buscamos fazer uma ponte entre o conhecimento que sempre existiu e os líderes do nosso tempo. Temos o pilar do autoconhecimento, porque se não nos conhecemos, não sabemos o que fazer da vida nem da nossa organização.
No que a formação de líderes mulheres é diferente da de homens?
Não adianta desenvolver mulheres líderes apenas do ponto de vista técnico, é necessário desenvolver aspectos de autoestima em virtude do passivo histórico e cultural que existe. Ao longo do tempo, as sociedades colocaram o homem acima da mulher do ponto de vista de cultura e de lei, de forma que por milênios as mulheres não tiveram direito a nada. Elas não eram consideradas "seres de alma" por alguns filósofos, por isso precisavam ser comandadas, o que acabou impactando a legislação.
As mulheres não podiam estudar, trabalhar, ter conta em banco etc, só recentemente que passamos a ter o direito de escolha. Somos apenas a segunda geração que está decidindo por suas vidas.
O que contribuiu para essa organização tão desigual?
A sociedade patriarcal se deu muito pelo contexto de sedentarização, propriedade e cultivo da terra: se eu sou dono de um território, entendo que é preciso defender aquilo que é meu, defender a mulher, que é minha e me dará herdeiros que pertencem a essa terra. Foram cerca de 10 mil de anos em que a figura de gênero masculino era superior ao feminino. E um inconsciente coletivo, que é permeado por essa cultura milenar, não muda em poucas décadas.
Então embora já tenhamos conquistado vários direitos, ainda temos amarras na hora de empreender e liderar?
Por que há tantas mulheres que, mesmo ocupando cargos de gestão, não falam o que precisam falar quando estão em uma mesa de reunião? Isso tem a ver com questões culturais, muitas mulheres não são educadas a falar o que pensam e, sim, a agradar. Daí a importância do desenvolvimento da autoestima feminina, de entender o seu valor enquanto ser humano para conseguir colocar a sua voz no mundo.
Quais as particularidades de uma formação de líderes mulheres?
Existem arquétipos femininos, modelos que existem no inconsciente coletivo desde que a humanidade é humanidade, como estudou Jung e a psicologia analítica. Alguns exemplos são o arquétipo de Afrodite, que diz respeito à beleza, à criatividade e ao amor, de Atena, que é a deusa da civilização, da justiça, que gere causas em prol das outras pessoas, de Hera, a mulher que está num lugar de aconselhamento, visa o cuidado com os valores e a moral, Deméter, o arquétipo da maternidade, aquela vontade que é inconsciente coletivo de despertar para alguma forma de cuidado, seja de um animal, uma família, uma comunidade, um filho.
O mundo do trabalho colocou as mulheres numa forma de existir que não preenche a psique do feminino
SORAIA SCHUTEL
Cofundadora da Sonata
O que os arquétipos têm a ver com os negócios?
Os arquétipos femininos são diferentes dos arquétipos masculinos, então existe um jeito arquetípico feminino de fazer negócios. Para uma mulher tomar decisão, ela não vai olhar só números, vai olhar as suas sensações, os seus sonhos, os seus símbolos, ou seja, tem alguma coisa que é mais forte do que nós mesmas porque pertence ao inconsciente coletivo.
Quais desafios precisam ser superados para uma mulher ser líder?
O primeiro é integrar quem somos ao mundo que está posto. As mulheres entraram num mercado de trabalho construído por homens e para homens, que é a lógica vigente do capitalismo e de toda a forma de gestão dos negócios. O mundo do trabalho colocou as mulheres numa forma de existir que não preenche a psique do feminino, que é preciso decidir só por números, planejar olhando só para fora. Só que o feminino olha para dentro: "Quem eu sou?", "Qual é a minha intuição e o meu propósito?", "Qual é o serviço que presto para a humanidade?".
Quando uma mulher entende o que é importante para si, isso se torna sucesso, porque além da prosperidade financeira, ela terá prosperidade intelectual, intuitiva, emocional, afetiva e saúde. Um exemplo real: a presidente de um grande grupo multinacional, quando foi convidada para o cargo, não negociou salário e sim, agenda, ao estilo "ok, eu aceito, desde que nos dias X e Y eu possa buscar meu filho na escola e consiga fazer meu exercício físico. São inegociáveis para mim".