Há um cofre cinza e robusto em um cantinho da Casa Torelly, imóvel tombado pela Prefeitura de Porto Alegre onde funciona a Diretoria de Patrimônio e Memória da pasta da Cultura. Colocando a combinação correta de números no segredo giratório, o que se revela detrás da porta de ferro é um verdadeiro tesouro da história da cidade. É lá, enrolada em uma flanela laranja e guardada dentro de uma caixinha de papelão, que está a primeira coroa de Miss Porto Alegre.
Em ouro e veludo roxo, a coroa por si só já é uma homenagem à cidade: seu formato é inspirado no diadema que encima o brasão de Porto Alegre, com cinco torres que lembram uma muralha medieval. A peça foi encomendada pela prefeitura em 1970 e confeccionada pelo joalheiro de Caxias do Sul Júlio Andreazza, com o custo de 5 mil cruzeiros e pesando quase um quilo. As informações constam em documentos que também estavam mantidos no cofre.
Em valores atuais, calculando conforme o Índice Geral de Preços, o número equivaleria a R$ 60 mil, estima o ex-superintendente do Tesouro Municipal, Paulo Roberto Fontoura, local que abrigou a coroa há alguns anos. Mas ele faz a ressalva de que, por seu componente histórico, o valor do item é inestimável.
Até a década de 1970, o concurso que escolhia a miss da cidade dava faixa à vencedora, mas não tinha coroa. Isso mudou quando a prefeitura se envolveu mais com a seletiva de beleza, como registrado em uma página do Diário de Notícias de 19 de abril de 1970, na qual foi anunciado: "O reinado de 'Miss Porto Alegre' terá a partir dêste ano uma coroa de ouro para significá-lo plenamente".
Primeira Miss a usar a coroa
A primeira miss a portar a coroa é uma mulher de nome bastante conhecido na Capital, a escritora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Jane Fraga Tutikian. Quando tinha 17 anos e buscava alguma independência, a gaúcha se inscreveu para o concurso de Miss Porto Alegre 1970, atraída principalmente pelos prêmios em dinheiro. Venceu representando o Clube Teresópolis.
— Eu tive a honra de ser a primeira miss a usar essa coroa. Quando a recebi, fiquei encantada, maravilhada. Achei que miss levava a coroa para casa, né? Mas não, aquela não. Cada vez que eu terminava algum compromisso como Miss Porto Alegre, sempre a entregava para alguém, não podia tirar do local onde ela estava — afirma Jane.
Já Denise Cezimbra, escolhida como Miss Porto Alegre em 1973, se recorda bem do peso da coroa, que não era das mais confortáveis de usar. Olhando as fotos de eventos nos quais portou o acessório, reparou que sua cabeça chegava a ficar um pouco torta, cansada de suportar o peso. Apesar disso, a jovem era completamente apaixonada pela joia, que lustrava com um paninho depois de usar e na qual costurou presilhas, para fixá-la melhor aos cabelos. Durante o seu ano de reinado, Denise lembra que foi autorizada a deixar a coroa guardada em um cofre, no banco.
— Ela é de uma beleza indescritível. Em matéria de beleza, não existe no Brasil e no mundo uma coroa que tenha esse histórico. Ela tem algo de medieval, acho ela deslumbrante — afirma a miss 1973.
Uma relíquia sem paradeiro?
Uma coroa histórica, mas que parece ter a vocação de se perder por aí — ou então de cair na boca do povo, virando motivo de especulação acerca do seu paradeiro. Após ser usada em algumas edições do Miss Porto Alegre, concurso que não é mais realizado hoje em dia, registros de jornais das décadas de 1980, 1990 e 2000 registram que a joia esteve desaparecida em algumas ocasiões. As notícias perguntavam "onde anda a coroa?", e apelidaram a situação toda de "o caso da coroa".
O adereço foi motivo de polêmica, conforme veiculado na Zero Hora de 12 de agosto de 1981. Na nota dizia-se que a joia, dada como desaparecida, se encontrava em poder dos Diários e Emissoras Associados do Rio Grande do Sul, que realizavam o concurso à época, e que teria sido doada ao grupo pela prefeitura. Tal doação foi contestada na mesma publicação por funcionários da prefeitura, que afirmaram que a joia tinha sido encomendada pelo Conselho Municipal de Turismo e paga pelo município. Ou seja, deveria ficar com a prefeitura.
Já na coluna Informe Especial de ZH, datada de 5 de setembro de 1999, uma nota intitulada "Mistério" afirmava: "O vereador João Dib (PPB) resolveu dar uma de Sherlock Holmes. Quer descobrir onde foi parar uma coroa de ouro que pertence ao município e que era utilizada anualmente na coroação da Miss Porto Alegre". O vereador tinha a informação de que, até 1985, a peça havia estado sob a guarda da Secretaria Municipal da Fazenda e queria saber se continuava lá ou se teria tomado outros rumos.
Dois dias depois, nova nota sobre o assunto foi publicada na coluna, desta vez com o título "Mistério resolvido", na qual o então secretário da Fazenda, Odir Tonollier, informava que a peça continuava "sã e salva, muito bem guardada, naquela secretaria".
Em 21 de outubro de 2003, novamente o assunto do sumiço veio à tona, desta vez pelo jornalista Fernando Albrecht, no Jornal do Comércio. Na nota "Procura-se uma coroa", diz-se que desde 1972 não se teria notícia do item.
Não fica claro se em algum momento a coroa foi "perdida" de fato ou se, simplesmente, seu paradeiro era do conhecimento de poucas pessoas da Secretaria da Fazenda, para onde Paulo Roberto Fontoura acredita que a coroa sempre voltava após ser usada em ocasiões especiais. Mas as dúvidas do público sobre o paradeiro eram tantas que até Jane Tutikian chegou ser convidada a falar a respeito:
— Até me ligaram para eu dar uma entrevista e eu fiquei muito triste quando ela desapareceu, porque as pessoas à época diziam "foi roubada". Lembro que fiquei muito triste porque a coroa era um destaque. Perto de todas as outras misses do Rio Grande do Sul que tinham a sua coroa, nenhuma era tão bonita quanto essa, nem a coroa de Miss Brasil.
Reencontro com patrimônio histórico
Em novembro de 2024, a reportagem de Zero Hora foi informada por um funcionário da Secretaria da Cultura do município, o assistente administrativo Renato Wieniewski, de que a coroa estaria em um cofre do órgão, e foi até lá para acompanhar a abertura e o reencontro com a coroa.
Renato, que sabia onde estavam a senha e as chaves do cofre, explicou como a joia foi parar lá, em 2019:
— Recebemos uma ligação do Tesouro Municipal dizendo que tinha uma coroa lá, que é um patrimônio histórico e que a Cultura deveria ficar com ela para o seu acervo.
A mando do então secretário da Cultura, Luciano Alabarse, Renato buscou a coroa, que foi então oferecida ao Museu de Porto Alegre e ao Arquivo Histórico. O assistente administrativo relata que, por falta de um expositor adequado, esses órgãos recusaram a oportunidade de tê-la em suas coleções naquele momento.
— Então aproveitou-se que esse cofre da secretaria não estava sendo utilizado e pensamos: "Vamos guardar. Em algum momento, essa coroa vai voltar à vida" — recorda Renato.
O momento talvez tenha chegado. De acordo com Juliana Wagner, arquiteta que atua na Diretoria de Patrimônio e Memória do município, será feita uma pesquisa mais aprofundada para confirmar informações e, então, tentar colocar a coroa em exibição.
— Vamos fazer uma pesquisa sobre quando foi executada, a quem pertenceu, e aí fazer uma interação com os nossos museus para tomar uma decisão junto à Secretária de Cultura sobre onde que ela poderia ficar exposta.
A miss 1970, Jane Tutikian, hoje com 72 anos, comemora a redescoberta:
— Soube que ela desapareceu e agora veio essa grande notícia, de que estava guardada. É engraçado pensar que alguém a guardou e não falou para ninguém. Dava até um livro, O Desaparecimento da Coroa (risos).