Tem coisas que só se aprende fazendo, de novo e de novo. Mas, para quem surfa ondas gigantes, há raras oportunidades anuais de estar no lugar certo, na hora certa e conseguir se equilibrar sobre essas águas ferozes que percorreram centenas de quilômetros pelo oceano até chegarem ali.
Dessa forma, explica a carioca Maya Gabeira, quanto mais tempo de carreira o surfista tem, mais chances e experiências acumuladas — a passagem das temporadas vira uma vantagem e não um fator de exclusão, como ocorre em tantos esportes de alto rendimento.
Com 37 anos, a atleta que fez carreira nas águas de Nazaré, em Portugal, está de olho no seu próximo recorde mundial, já que acumula dois no currículo. Em fevereiro de 2020, surfou uma onda de 22,4 metros de altura, equivalente a um prédio de oito andares. O feito a colocou no Guinness World Records, quebrando o recorde de maior onda já surfada por uma mulher, que era dela: 20,8 metros, em janeiro de 2018, também em Nazaré.
O barato do esporte é que a nossa melhor onda está sempre por vir. A gente pode performar até mais velho, porque embora uma parte do nosso esporte seja corpo, preparo, tem muito de experiência também
MAYA GABEIRA
O amor da brasileira pelas big waves começou aos 17 anos, quando se mudou para o Havaí, nos Estados Unidos, e se consolidou em Portugal, onde vive há nove anos. Antes dos louros, porém, a profissão quase lhe custou a vida quando sofreu um acidente grave em Nazaré, em 2013. Quebrou o tornozelo, precisou ser resgatada de jet-ski e reanimada na praia. Quando recobrou a pulsação e a consciência, a vida mudou:
— O acidente me ensinou a não ser imediatista, trouxe uma certa calma e aceitação perante as coisas que não controlo. Entendi que o mais importante é você dar o seu melhor, mas sabendo que o amanhã ainda existe. Não adianta você queimar tudo hoje e não ter uma próxima oportunidade. É melhor falhar hoje e poder tentar de novo amanhã.
Na hora da onda, você não pensa em nada, ali é a melhor parte do trabalho. O resto a gente vive para chegar naquele momento
MAYA GABEIRA
Apesar do trauma, sua relação com o mar expandiu, inclusive, para as novas vertentes profissionais da literatura e do empreendedorismo. Há dois anos lançou o primeiro livro, Maya e a Fera, pela editora Planeta, um conto de fadas infantil inspirado na sua história profissional.
No dia 6 de agosto deste ano, publicou a continuação da obra, Maya Makes Waves — ainda sem tradução em português. Sua história também foi contada no documentário Maya and the Wave, da diretora Stephanie Jones, que está rodando festivais — em setembro, será exibido em Nova York e Los Angeles.
A carioca é ativista pela vida marinha, movida pelo amor e respeito pelo meio ambiente, que aprendeu com o pai, o jornalista e político Fernando Gabeira. Maya é membro do conselho diretor da Oceana, organização internacional focada exclusivamente na conservação dos oceanos e embaixadora da Unesco para Oceanos e Juventude.
— A preocupação com a causa ambiental vem de berço, porque meu pai é um grande ativista, alguém que mesmo antes de sabermos o que era a palavra “aquecimento global” já se preocupava sobre o assunto. E, por ter passado os últimos 20 anos dentro do mar, entendi que não era só a floresta, o oceano precisa de proteção também. É preciso de vozes ativas para defendê-lo, porque nossa vida depende disso — alerta Maya.
Na conversa com Donna, a surfista dá mais detalhes sobre o seu ativismo pela proteção dos mares e fala sobre o desafio do machismo e do etarismo no esporte.
Em algum momento você fez a escolha "vou ser uma atleta de ondas gigantes", ao invés do surfe convencional?
Comecei no surfe com uma onda pequena que, aliás, é o que faço todo dia, porque onda gigante não é algo que tem sempre. Meu trabalho é estar preparada para, quando ela aparecer, eu performar no mais alto nível. Mas desde os 14 anos, quando comecei a surfar no Rio, adorava ver o mar de ressaca e achava incrível a coragem dos meninos.
Você se destacou numa modalidade que é masculinizada. Como está o panorama no esporte desde que você começou até agora?
Mudou muito. A sociedade agora luta pela igualdade de gênero; há mais conscientização e um aumento na presença das mulheres em esportes dominados por homens. Minha carreira foi muito difícil, fui hostilizada, vi muito preconceito, além da falta de oportunidade, que é uma questão primordial para atingir objetivos como atleta.
Até pouquíssimo tempo atrás não havia campeonato feminino nem recorde feminino, então tudo eu tinha que inventar. Criei formas de as pessoas verem que era boa, o que dava muito trabalho.
Qual é a sensação de surfar uma onda de 22,4 metros, o seu recorde?
É muita adrenalina e velocidade. Nesses dias, o mar está completamente revoltado e cheio de variáveis que você tem que saber administrar para poder surfar e sair de lá viva. Trabalhamos em cima de um protocolo de segurança.
Mas na hora da onda, você não pensa em nada, ali é a melhor parte do trabalho (risos), o resto a gente vive para chegar naquele momento. Quando você surfa, a onda é sua e depois nunca mais. Aquele momento é único. São momentos inesquecíveis em energia e intensidade.
Neste ano vimos Jade Barbosa ganhando medalha na Olimpíada de Paris aos 33 anos, símbolo de como as carreiras estão mais longevas. Há etarismo no seu esporte?
Com certeza. Estamos em outro nível de medicina, alimentação e etc, conseguimos ficar competitivos por mais tempo. Mas, assim como o esporte de Jade, que recebe atenção a cada quatro anos, o meu trabalho como atleta profissional também fica no escuro.
Minha modalidade não é televisionada, as pessoas perdem um pouco a noção do que estou fazendo. Minha última vitória profissional foi em fevereiro deste ano, então ainda estou no meu auge.
O que é essencial para se manter competitiva e saudável?
É disciplina e motivação. Às vezes tem que reencontrar a chama dentro de você para se motivar para o próximo desafio. Todo atleta passa por dificuldades, mas a gente é condicionado a se superar e voltar melhor.
Você chegou a duvidar que conseguiria voltar, depois do acidente de 2013?
Sim, por quatro anos não tinha a menor ideia se conseguiria voltar ou não, apesar de estar trabalhando todos os dias. Sempre fui apaixonada pelo processo e isso foi o que me segurou naquele período.
O processo é o mais importante, o resultado é raso. Se você só queria o resultado, quando o atinge, o dia seguinte é uma depressão do caramba.
Uma de suas bandeiras é a proteção dos oceanos. Acredita que está sendo feito o que é necessário?
Não. O mundo é complexo e, apesar de sabermos o que precisamos fazer, não fazemos diante da ganância, do imediatismo e do poder. Seria necessário 30% do oceano preservado até 2030, em locais que tem maior quantidade de biodiversidade, que é um objetivo que temos.
Em que fase da vida você está, no que está interessada?
Estou treinando para a temporada, que começa em outubro, e buscando formas de me sentir melhor com terapia, meditação, leitura e exercícios.
Estou num momento de evolução, porque se a gente não faz este trabalho individual de se preencher, não temos o que dar para o mundo, não é?