Os cinco andares da escola estão decorados com balões cor-de-rosa e luzinhas no dia em que Vera Bublitz atendeu a reportagem, na sede do bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Numa parede do térreo, um letreiro luminoso escrito Happy Birthday anuncia que as comemorações dos 80 anos desta mestre do ballet gaúcho estão apenas começando.
O dia 19 de fevereiro é a data oficial, mas as comemorações se estendem ao longo do ano: o Theatro São Pedro, adianta ela, em breve terá uma placa de prata em sua homenagem, notícia que recebeu do presidente da Fundação Theatro São Pedro, Antônio Hohlfeldt.
— Vão fazer publicamente esta homenagem em agosto, e já estou a mil porque vamos fazer o espetáculo. Vou ganhar uma plaquinha pequena e uma outra, grande, será colocada na galeria do local, então serei imortal no Theatro São Pedro. Tem um significado incrível —comemora.
Estou em paz com minhas escolhas porque tinha uma missão a cumprir e não fugi dessa luta mesmo nos momentos de maior cansaço e desânimo.
VERA BUBLITZ
No contraste com a potência de uma mulher que em breve será “imortal” e que fundou uma escola que tem duas sedes na Capital, Vera chama atenção pela simplicidade e proximidade no trato com as alunas, professoras e funcionárias do Ballet Vera Bublitz. Conversando com uma menina recém-matriculada, a octogenária diz:
— Eu sou a tia Vera Bublitz e aqui a gente vai te cuidar muito bem.
Tia é como todos a chamam, porque dentro do ballet a dinâmica é a de uma família: uma das escolas fica na Rua Corte Real, onde seus próprios descendentes foram criados – Nicholas e Carlla Bublitz – e onde foi protagonista na formação dos filhos de centenas de pais, depois que o lar foi convertido em escola, há 25 anos.
Essa trajetória, afirma, foi marcada pelo amor e pela abnegação. Quando a reportagem avisa que a ideia desta matéria é falar principalmente dela própria, seus sentimentos e vontades, Vera deixa bem claro que ela e o ballet são indissociáveis, e brinca:
— Ah, então só um pouquinho, deixa eu entrar para dentro de mim porque ultimamente ando olhando só para fora (risos). Levo uma vida em que as coisas pessoais são sempre deixadas para trás, porque estou sempre pensando “O que tenho que fazer agora? E o futuro?!”.
A comemoração de 80 anos foi uma das poucas festas de aniversário que já teve, pois geralmente não tem tempo para isso. Embora já não dê mais aulas, continua orientando os professores e acompanhando as alunas em campeonatos – neste final de semana, está com uma de suas bailarinas prodígio no Portugal Dançarte e, em abril, embarca para a Flórida (EUA), junto a um grupo de alunas que participam da World Ballet Competition.
Presença
Trabalhar com uma dança clássica, explica Vera, pressupõe uma necessidade de estar presente o tempo todo, ciente da responsabilidade com o corpo e a mente dos alunos e sempre em busca de abrir-lhes portas, além de trazer grandes nomes para dançar no Estado. Nessa batida, sobra pouco espaço para tudo o que foge ao mundo dos pliés e grand jetés.
— Não tive tempo para chá com amigas, quase não tenho amigas velhas porque não fiz amizades da minha idade. Abdiquei de quase tudo que fosse de fora do ballet, até as férias eram usadas para assistir a espetáculos. Estou em paz com minhas escolhas porque tinha uma missão a cumprir e não fugi dessa luta mesmo nos momentos de maior cansaço e desânimo.
A missão é justamente a de sempre comparecer diante dos alunos e da sua equipe, sem falta e sem desculpas. Antes de se transformar em professora e empreendedora, no entanto, Vera calçou as sapatilhas e praticou do outro lado da barra por 11 anos. Natural de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, ela estudou ballet dos cinco aos 16 anos em Florianópolis com a professora Albertina Saikovska, uma bailarina foragida da Rússia.
— Vivi na escola dela até me casar, aos 16 anos, e estou casada com esse cidadão até hoje, mais de 60 anos depois. Uma coisa engraçada é que se casar na adolescência podia, mas quando minha professora queria me levar para o Rio de Janeiro, para o ballet da Tatiana Leskova, outra russa que dirigiu em diversas ocasiões o ballet Municipal do Rio, isso meu pai não deixava fazer aos 16 — reflete.
Mas as lembranças que a trouxeram até aqui não são amargas, já que garante que o desejo de ser o maior nome em cima do palco jamais foi seu maior sonho:
— Penso que o “ser bailarina” nunca foi um desejo meu, não pensei em ir para fora, porque queria viver com a minha família. Se transformou em algo grandioso na nossa vida porque a filha e o neto estão dando continuidade.
Se hoje Ballet Vera Bublitz e ela não se dissociam, é porque têm sido a mesma entidade há 60 anos. A primeira escola foi aberta em 1964, em Cruz Alta, cidade para onde se mudou com o marido, o ortodontista gaúcho Carlos Bublitz, e os filhos. À época, ela também dava aulas nas cidades do entorno, como Panambi, Ijuí e Ibirubá. Aos olhos do sogro, “um alemão comprido, de mãozonas bem magras”, a escola dificilmente seria bem-sucedida, recorda Vera:
— Um dia ele bateu de leve nas minhas costas e disse “Minha filha, esse ballet não vai dar certo” porque achava que não era algo que pessoas do Interior iriam investir. E foi o contrário, tive muito sucesso.
Este 2024 também é motivo de festa porque marca o aniversário de 45 anos do Ballet Vera Bublitz em Porto Alegre, uma equipe que se orgulha de ter alunas que competem mundialmente e de ser vitrine para talentos como Carla Körbes, que em 1999 se tornou aprendiz no New York City Ballet (EUA) e, em 2006, chegou a ser primeira bailarina no Pacific Northwest Ballet, em Seattle.
Vera se emociona ao lembrar dos grandes nomes que conseguiu trazer para se apresentarem com suas bailarinas no Estado. Entre eles está o americano Peter Boal, então primeiro bailarino do New York City Ballet, que em 1995 subiu ao palco gaúcho para dançar Apollo. Mas a visita mais marcante talvez tenha sido a de Fernando Bujones, um dos maiores solistas do ballet mundial que, em 1990, acompanhou as bailarinas de Vera.
— Uma vez assisti a Bujones no Lincoln Center (em Nova York) dançando Paquita. Tem um momento em que ele entra no palco e faz uma reverência à primeira bailarina, indo quase até o chão. Pensei “Como gostaria que ele fizesse isso para a minha bailarina”, e consegui! Chorei quando o vi fazendo reverência para minha aluna, que representava o Ballet Vera Bublitz. A história da minha vida tem momentos muito gostosos — ressalta.
Heranças
Uma vida dedicada à dança mostra seus resultados no corpo. Vera jura que não sente uma dor sequer na coluna e tem músculos fortes o suficiente para subir e descer pelos cinco pisos da escola o dia inteiro, de segunda a sábado. A profissão não lhe causou lesões sérias, mas a vida, por outro lado, sim: hoje já não consegue erguer o braço direito acima da cabeça pois “arrebentou” o manguito rotador após décadas ajudando a amparar o marido, que sofre de Parkinson desde os 60.
Encontrou no gyrotonic uma atividade física diária – é um primo distante do Pilates que utiliza aparelhos para propiciar exercícios de mobilidade e flexibilidade, sem impacto. Uma pessoa de 80 anos tem suas “fragilidades”, diz Vera, mas sua expectativa é seguir fazendo o que faz de melhor enquanto o tempo permitir.
— Só não gostaria de perder a autonomia, acho muito triste, é tudo que não quero. Costumo dizer aos meus filhos “Olha, se eu estiver bem e acontecer de partir, podem fazer uma festa” — brinca.
Com Apetite
De olho nos talentos do futuro da dança, Vera conta que desde o fim da pandemia tem visto um novo cenário, com muitas alunas que chegam com gana de serem profissionais. Isso geralmente acontece pois são influenciadas por vídeos no Instagram e no TikTok de grandes bailarinas mirins russas, japonesas, coreanas e etc.
— Elas entram no celular e veem crianças de qualquer lugar do mundo, com nove, 10 anos, fazendo horrores tecnicamente. Elas vêm até nós e dizem “Eu quero dançar assim”.
Minha vida se tornou isso e vai continuar sendo isso, se Deus quiser
VERA BUBLITZ
Segundo a mestre, não faltam no Estado bailarinos com potencial para brilhar em nível profissional, mas necessita de melhorias nas oportunidades de carreira, com companhias de dança mais robustas.
— Sempre pensei numa companhia de dança em Porto Alegre, e isso não acontece. Sou uma escola, os pais pagam para suas filhas fazerem ballet. O que queria é uma abertura profissional para o nosso bailarino, porque perdemos muitos talentos que migram para Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra. Teria que haver algo que abrace nossos talentos, uma companhia forte. No ano passado, uma menina nossa de 11 anos foi medalha de ouro no World Ballet Competition. Quem é que ficou sabendo disso e valoriza? É bem complicado — lamenta.
Na conversa com Vera Bublitz, a sensação que fica é de que é uma fortaleza, é o sujeito que segura o “pau da barraca” quando tudo parece prestes a desmoronar. Ao ouvir esta impressão, Vera concorda e, da forma elegante como só poderia ser uma mestre do ballet, conta que tenta ser “uma célula de segurança” para as pessoas que a rodeiam. E complementa que, para se manter com tal firmeza, seu combustível é o convívio diário com os aprendizes.
— Digo que elas são minhas vitaminas. Se você tem o título de professor, tem que dar exemplo, segurança. Pensando nisso que consigo dizer: “Tu estás fazendo certo. Podes dormir tranquila”. Tenho consciência do que fiz nesses 80 anos. Hoje minha escola é meu circo, meu cinema, minha diversão e até minhas viagens, porque viajo com as alunas. Minha vida se tornou isso e vai continuar sendo isso, se Deus quiser.