Na noite de terça-feira (21), a influenciadora digital Karen Bachini postou um vídeo em seu canal no YouTube, em que afirma ser pessoa intersexo. A publicação, além de um relato de vivência, buscava chamar atenção dos seguidores para uma condição que, segundo estimativa do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), pode afetar até 3,5 milhões de indivíduos no Brasil.
Pessoas intersexo nascem com características sexuais que não se enquadram nas normas médicas e sociais típicas de corpos masculinos ou femininos, binárias — o que inclui genitais, padrões cromossômicos, gônadas (ovários e testículos) e hormônios. As informações são da cartilha Visibilidade Intersexo, elaborada em novembro do ano passado pelo Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e de Gênero da Defensoria Pública do RS (Nudiversi) em parceria com a Associação Brasileira de Intersexos (Abrai).
Uma pessoa intersexo pode, por exemplo, ter órgãos internos e externos femininos, mas não produzir os hormônios correspondentes, conforme explica a defensora pública Aline Palermo Guimarães, dirigente do Nudiversi:
— O reconhecimento da intersexualidade pode acontecer logo ao nascimento, em razão de características externas, mas é possível que essas variações somente venham a ser percebidas durante a puberdade e a vida adulta. Existem casos, por exemplo, de pessoas que se descobrem intersexo quando não começam a menstruar dentro do período esperado — diz Aline.
Conforme o relato de Karen Bachini, foi fazendo exames recentes que veio a compreensão de que ela faz parte da categoria pseudo-hermafrodita feminina, possuindo os genitais e órgãos internos femininos, mas não produzindo hormônios. No vídeo, a carioca de 32 anos explica ainda que chegou a buscar ajuda médica aos 18, na tentativa de entender o que estava havendo com seu corpo, já que seus ovários eram pequenos e ela não tinha glândulas mamárias. Dos profissionais, recebeu um diagnóstico de menopausa.
— Naquela época, foi dito que eu tinha menstruado em alguma parte da minha vida e entrei na menopausa. Só que sempre achei isso muito estranho, porque, se eu tivesse menstruado, eu saberia. Foi imposto esse diagnóstico e também imposto que eu deveria fazer hormonização feminina — relatou a influencer.
Sem estar ciente da condição de intersexo, Karen seguiu a orientação médica e passou a tomar pílula anticoncepcional para repor os hormônios femininos que seu corpo não produz, o que desencadeou nela a puberdade pela qual seu corpo não havia passado na adolescência e desenvolvendo características femininas, como o aumento dos seios. Durante uma fase em que resolveu parar por um tempo com os hormônios, viu essas características começarem a desaparecer.
— Quando voltei com os hormônios femininos, voltei com as características femininas. Mas se paro de tomar, perco essas características — comentou.
A influenciadora disse ainda que passou por um processo de não-identificação com o próprio corpo, não queria se olhar ou ser tocada. A situação mudou de um ano para cá, quando começou a fazer suplementação com hormônio masculino também, o que relata ter lhe devolvido a libido e a autoestima. Hoje, ela passa por um processo de aceitação de identidade.
— Ainda não estou satisfeita e não sei o que falta. Acho que é me entender e me aceitar, só. Mas é muito difícil, porque, depois que você começa a pensar "nossa, tem uma parte de mim que é mulher é outra que é homem", sua visão de tudo muda, e não achei que seria assim. A verdade é que tudo muda — desabafou a carioca.
O caso de Karen é somente um dentro de um guarda-chuva composto por pelo-menos 47 condições intersexo diferentes. Segundo a Abrai, os casos mais comuns são hipospadia, criptorquidia, clitomegalia, micropenis, síndrome de Klinefelter, hiperplasia adrenal congênita e síndrome de Turner. A associação e a comunidade intersexo buscam conscientizar e promover respeito à diversidade dos corpos, tanto na sociedade quanto na esfera médica, ao mesmo tempo em que incentiva o debate acerca das cirurgias de designação sexual.
A cartilha Visibilidade Intersexo orienta que as "modificações cirúrgicas nas genitálias de bebês intersexo logo após o nascimento, embora ainda infelizmente comuns, devem ser evitadas, pois são irreversíveis e, nesse momento, ainda não há como saber com qual gênero a pessoa se identificará no futuro". Recomenda-se que sejam feitas intervenções somente nos casos em que houver risco à saúde.
Entenda a condição
Thais Emília de Campos dos Santos, fundadora e presidente da Associação Brasileira de Intersexos (Abrai), psicanalista e psicopedagoga, esclarece, a seguir, algumas das dúvidas mais comuns sobre o assunto. Ela é também mãe de intersexo, o bebê pseudo-hermafrodita Jacob, nascido em 2016 e falecido em 2018, vítima de uma condição cardíaca. Confira:
O que é intersexo?
A Associação Brasileira de Intersexo segue a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que o intersexo são variações corpóreas que podem anatômicas, fenótipos, hormonais ou cromossômicas. Ser intersexo não é apenas ter uma DDS (diferenças do desenvolvimento do sexo), que são as 47 condições corpóreas que causam um corpo com vivências intersexo. Existem algumas situações que ainda não estão registradas, mas que também se encaixam.
A Abrai já encaminhou mais dois casos para a geneticista de uma universidade pública para catalogação. Muitos médicos, quando se deparam com situaçoes novas e não sabem atender, procuram a Abrai e a gente faz essa ponte de encaminhar a grandes centros de pesquisa para investigar melhor o que está acontecendo.
Como uma pessoa pode saber se é intersexo?
Através de exames genéticos, como o cariótipo, exames hormonais, exames de imagem e exames clínicos. Não é possível fazer apenas de imagem pois estamos falando de variações das características corporais em relação a genes, hormônios, fenótipo e anatomia. Uma pessoa intersexo pode ter seus exames de imagem mostrando que está tudo dentro dos padrões para determinado sexo, porém sua produção hormonal pode ser alterada, fazendo com que produza determinados hormônios.
Um exemplo é o caso de uma mulher que naturalmente viriliza (passa a apresentar características masculinas). Isso é um estado intersexo. Outro exemplo é um menino que não desenvolve, na puberdade, e as características sexuais secundárias masculina como nascer pelo, engrossar a voz. Também é uma condição intersexo.
Casos como o da Karen Bachini, que só se reconheceu intersexo depois dos 30 anos, são comuns?
São muito comuns. Há casos de pessoas que descobrem aos 70 anos. Isso acontece porque alguma questões intersexo são perceptíveis no pré-natal, em exames de imagem, ou no nascimento — é quando realmente há uma alteração anatômica no genital diferente do que esperado pela medicina.
Mas muitos outros casos vão ser descobertos só na adolescência, no início da puberdade. Como, por exemplo, quando a menina não menstrua ou no caso do menino de 11 anos que começou a ter cólica forte e a fazer xixi com sangue. Fazendo ultrassom, descobriu-se que ele tinha o útero e estava menstruando pelo pênis.
Já outras pessoas descobrem só na vida adulta, quando estão fazendo tratamento para engravidar. Aí, fazendo alguns exames mais sofisticados, descobre que tem uma condição intersexo. Muitas vezes, a alteração anatômica é interna e não externa, e a pessoa vai descobrir mais tarde na vida adulta por questões hormonais, por exame de imagens etc.
Qual a diferença de intersexo e hermafordita?
Hermafrodita é uma condição dentro do intersexo. Além dessa, há pelo menos outras 46 condições intersexo. Todo hermafrodita (ou hermafrodita verdadeiro, como é dito pela medicina atualmente) é intersexo. Porém, nem todo intersexo é hermafrodita, porque há outras condições em que a pessoa pode ser intersexo.
Temos, por exemplo, as condições pseudo-hermafrodita, temos a pessoa XXY, tem a pessoa X0, tem a hiperplasia adrenal congênita, tem a hipospádia, etc. Todas essas condições, dentre outras, são estados intersexo.
Há relação entre intersexo e identidade de gênero?
Não. Intersexo é uma questão corporal, enquanto identidade de gênero é uma questão psíquica, social. Eu conheço pessoas intersexo que se identificam como mulheres, outras homens, outras como não binárias, outras que ao nascimento foram designadas do sexo feminino, mas na vida adulta se identificaram como sexo masculino, e outros casos.
O tema ainda é pouco difundido?
Hoje, há escolas fazendo um bom trabalho, explicando sobre corpos intersexo numa perspectiva humanizada. Mas por muito tempo se explicava que isso “existe, é raro e essas pessoas morrem cedo”, ou ainda livros de genética colocando intersexo num patamar de sub-humano.
Muitas pessoas já estudaram intersexo na disciplina de biologia do Ensimo Médio, porém sem a explicação de que um em cada cem nascimentos é um bebê intersexo. Também há muita subnotificação, já que os casos intersexo notificados ao nascimento são apenas os que tem alterações anatômicas. Então, se você for pensar que a maioria se descobre na puberdade e na vida adulta, há muito mais.
O assunto é pouco difundido porque também existe muito tabu. O meu filho teve diagnóstico de pseudo-hermafrodita. E aí as pessoas dizem “não existe isso, né?”.Meio que tira o chão das pessoas pensar que existem indivíduos que tem essas variações corpóreas, que não tem um sexo, que não são nem macho, nem fêmea.
Porque conscientizar acerca de intersexo?
Porque todo mundo pode um dia ter um filho, sobrinho, aluno ou paciente intersexo, então é importante a gente conhecer para saber lidar. Eu tive um filho, Jacob. Quando ele nasceu, em 2016, confirmou-se que era pseudo-hermafrodita (o pênis era bem pequeno e não havia testículos). Só que, na época, no Brasil, não era possível registrar o bebê sem saber era menino ou menina, o que achei um absurdo.
Os médicos falaram “então, a gente faz uma cirurgia plástica, uma vagina nele, e você educa como menina”. E eu fiquei “Peraí. Como? Ele é diferente. Se crescer e não concordar com essa cirurgia que foi feita, não tem como voltar atrás”. Não aceitei.
Só que a gente sabe que, mesmo com ONU e OMS sendo contra, considerando crime a cirurgia precoce em bebês, no Brasil ainda é uma prática. Então, os médicos ainda estão muito despreparados em relação a isso.
Questionei, porque já tinha algum conhecimento a respeito, já era professora em faculdade, mas a maioria das mães não questiona por desconhecimento. Por achar a situação toda um absurdo, fiz uma luta em cima disso e, desde 2022, se consegue registrar esses bebês.
Serviços de Saúde
O cirurgião pediátrico Eduardo Corrêa Costa, coordenador do Programa de Anomalias da Diferenciação Sexual (PADS) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, compartilha suas experiências com o atendimento de pacientes intersexo:
De que forma são atendidos os pacientes com DDS nos serviços de saúde e como são acolhidas as famílias?
A melhor forma de atendimento de pacientes com DDS é multiprofissional, ela é preconizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 2003. Essa também é a recomendação de todos os consensos existentes na literatura médica dos últimos quase 20 anos.
Essa equipe deve contar com um cirurgião/urologista pediátrico, um endocrinologista pediátrico, um médico geneticista, um pediatra/neonatologista, um psicólogo, um enfermeiro, um assistente social e um bioeticista. Outros profissionais podem estar envolvidos com o atendimento desses pacientes, mas os citados são os indicados pelo CFM e pelo Ministério da Saúde.
Devem trabalhar em conjunto e de forma integrada e centrada no paciente, o que quer dizer que devemos adequar os protocolos existentes às necessidades do nosso paciente e, até mesmo, às realidades que se apresentam. Existem protocolos estabelecidos na literatura, cada dia com mais opções de exames de última geração que auxiliam no diagnóstico, que podem ser adaptados a realidades locais. Mas os primeiros passos são o acolhimento do paciente e sua família, com informações baseadas em evidências científicas que possam ajudar os pais na melhor tomada de decisão.
Importante ressaltar que o atendimento não se encerra no diagnóstico ou numa eventual cirurgia. O acompanhamento ao longo da vida é imprescindível, pois as questões e as demandas mudam com o passar do tempo, não só as médicas como as emocionais. O nascimento de uma criança com indefinição sexual costuma gerar uma angústia nos pais, sendo assim necessária a presença da equipe para acolher e informar nesse primeiro momento. Mas, assim como essas, outras situações acabam sendo estressoras e podem ser melhor encaminhadas por uma equipe capacitada.
O que representa a conquista do direito ao registro civil de forma neutra?
Em 2018, o Programa de Anomalias da Diferenciação Sexual (PADS) do HCPA, por intermédio da comissão de bioética do hospital, participou de uma série de reuniões com Poder Judiciário (Corregedoria-Geral de Justiça) e Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do RS (ARPEN-RS) que originou o provimento 016/2019 - CGJ RS publicado em 2019. Esse documento permitia o registro do recém-nascido de forma neutra garantindo direitos como as licenças maternidade e paternidade, a transferência entre cidades, inclusão em planos de saúde, dentre outras.
Isso promovia a possibilidade de a equipe realizar toda a investigação sem atropelos. Após o diagnóstico estabelecido, a família podia alterar o registro para o sexo designado somente de posse de um atestado médico, pelo próprio registrador, sem necessidade de um processo jurídico e sem custo algum. Como esse provimento tinha valor somente dentro do nosso Estado, outros estados seguiram o exemplo e implementaram provimentos semelhantes. Devido a isso, o Conselho Nacional de Justiça nos convocou para promover essa discussão em nível nacional, surgindo então o provimento 122 que foi publicado em 2021, passando a ter validade nacional.