Uma breve busca no dicionário do Google revela a definição de madrasta como “a mulher má, incapaz de sentimentos afetuosos e amigáveis”. Nada parecido com o que se vê ao conversar com a educadora parental Mariana Camardelli, 35 anos, enteada, madrasta e mãe, nesta ordem, e nome por trás da comunidade Somos Madrastas (@somos.madrastas no Instagram).
— A gente já sai perdendo quando entra no jogo. Espera-se que as mães sejam maravilhosas e que as madrastas façam maldades. Isso ao mesmo tempo aprisiona as mães em culpa e coloca as madrastas em uma situação de insegurança e medo. É como se a sociedade olhasse para nós esperando nossa maçã envenenada, a gente abandonando crianças sem comida na floresta — elucida.
Para a educadora parental, os estereótipos criados para a mulher que casa com alguém que já tem filhos ainda seguem com força na sociedade – e, muitas vezes, vêm de pessoas que não estão inclusas no círculo familiar:
É como se a sociedade olhasse para nós esperando nossa maçã envenenada
MARIANA CAMARDELLI
Educadora parental
— Sempre fui aceita pela mãe dos meus enteados e pelos meninos, mas me sentia deslocada em rodas de conversa sobre maternidade. A mulher que se torna mãe tem grupos de apoio, cursos, literatura. A mulher que decide se relacionar com alguém que já tem filhos fica sozinha num terremoto de estigmas e preconceitos.
Foi por sentir falta de um espaço para acolher mulheres que se tornaram madrastas que Mariana decidiu criar o grupo de apoio no ano passado – afinal, ela sabe bem como é a experiência. Em 2014, a educadora conheceu o atual marido, Rodrigo, pai de Augusto, 17, e Vicente, 12, e, apesar de adorar crianças e ter crescido com padrasto e madrasta, já que seus pais são divorciados, confessa que se sentiu perdida quando decidiram avançar o relacionamento para algo mais sério.
— Muitas mulheres acabam ouvindo conselhos de fugir do homem que já foi casado e tem filhos porque pode ser sinônimo de confusão. No meu caso, achei que as coisas seriam simples, sabe? Acredito que o choque teria sido maior se eu me interessasse por ele e só depois ficasse sabendo, mas, mesmo assim, não tinha ideia de que poderia acontecer comigo, menos ainda de como agir quando aconteceu — conta.
Hoje, o casal também é pai de Flora, três anos, e Mariana está no quinto mês de gestação do segundo bebê.
Virei madrasta, e agora?
Brincar de “madrasta e filhinho” não é comum na infância – e, diferentemente da maternidade, com cursos para gestantes, não existe aula ou manual para quem se casa com alguém que já tem filhos. A terapeuta de casal Adriana Zilberman observa que o próprio termo “madrasta” está desatualizado e carregado de preconceitos:
— Em torno de 60% das relações são de recasamentos, e ainda assim não há uma nomenclatura adequada. Isso mostra que nossa sociedade ainda não digeriu bem essas relações. Hoje, há pessoas que se relacionam bem depois de uma separação, os novos parceiros convivem harmoniosamente e as crianças podem se relacionar com os novos personagens de forma saudável.
Em torno de 60% das relações são de recasamentos, e ainda assim não há uma nomenclatura adequada
ADRIANA ZILBERMAN
psicóloga e terapeuta de casal
Cada relação tem sua complexidade e fatores particulares envolvidos, por isso é essencial estabelecer diálogo e definir funções em comum acordo, respeitando o tempo de cada um para absorver os novos papéis nas relações familiares. Já diz o ditado: o combinado não sai caro. Nem sempre a madrasta precisa ou deseja assumir o papel de mãe dos enteados, e as regras precisam ser arranjadas com transparência pelos adultos envolvidos.
— A madrasta vai exercer funções de mãe ou será uma pessoa que somente vai conviver com os enteados? A criança precisa ter segurança de que esses vínculos não vão se enfraquecer depois de uma separação. Os adultos precisam ter isso bem claro. Se a separação não foi tranquila, a criança pode ficar num conflito de lealdade. Por exemplo, ver que o pai está feliz, está com outra mulher e a mãe está triste, ainda enlutada pela separação. É difícil para esse filho estabelecer relação com a madrasta sem sentir que está sendo desleal com sua mãe — explica a psicóloga, que também é diretora, professora e supervisora do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (Cefi), de Porto Alegre.
Diálogo é um dos pontos defendidos fortemente por Mariana nos encontros do Somos Madrastas, além de fazer parte da sua própria rotina familiar:
— Regras e combinados, por exemplo, são debatidos em reuniões familiares e acompanhados por todos. A criança se sente parte, se sente pertencente, útil e funcional.
Assim como muitas brasileiras, a educadora parental também precisou se reinventar durante a pandemia e foi daí que surgiu a comunidade, que hoje soma mais de 20 mil seguidores somente no Instagram, sem contar os eventos que ocorrem dentro deste espaço de acolhimento virtual, onde mulheres de diferentes idades se encontram para trocar experiências, desabafar e compartilhar dúvidas. Tantas são as questões que Mariana as reuniu em livro. Madrasta Também Educa? será lançado no dia 11 de junho, com dicas práticas para o dia a dia em família – e adianta alguns dos tópicos na entrevista a seguir:
Até que ponto a madrasta pode se envolver na educação dos enteados?
Regras e combinados são cocriados por todos que vivem na casa. Como madrasta, posso cobrar do enteado que as duas horas de videogame que combinamos juntos já se passaram. Já grandes decisões que envolvem o casal parental primário da criança serão sempre resguardadas, como saúde e educação. Quando uma pergunta do gênero chega para mim eu posso opinar, mas sempre direi: você precisa falar com seus pais sobre isso.
Regras e combinados são cocriados por todos que vivem na casa
MARIANA CAMARDELLI
Educadora parental
O quanto é bom ou ruim a madrasta ficar a sós com a criança quando o pai não está?
As mulheres que preferem não ficar sozinhas com os enteados deixam de fazer isso por medo, e não por falta de afeto. O ambiente pode ficar tóxico quando existem brigas entre os adultos e isso faz com que as madrastas tenham medo de ficar com as crianças e serem culpabilizadas caso alguma coisa aconteça. Lembro de estar sozinha com meu enteado quando ele tinha uns sete anos. Descemos para jogar bola na quadra do prédio, ele foi defender meu chute e caiu com a cabeça no chão. Fiquei apavorada, mas não me senti acusada ou culpada. Estávamos brincando, foi um acidente. Poderia acontecer com um sobrinho ou afilhado, mas, se já existe conflito entre adultos, qualquer situação pode ser munição para culpar mais.
A comunidade Somos Madrastas traz relatos positivos sobre a boa relação entre mães e madrastas, mas não são maioria. A ideia antiga de competição entre mulheres ainda interfere nisso?
Vivemos em uma sociedade que cria as meninas para almejarem o casamento com o príncipe encantado. Ainda somos produto dessa narrativa, que nos cria para essa “resolução” de filme de romance. Também existe essa ideia de que um(a) parceiro(a) “pertence” a você, sabe? Então se a pessoa é minha, ela não pode se relacionar com outras, porque isso me afeta profundamente. Assim a gente acaba se afastando dos ex, porque eles representam concorrência direta ao que a gente quer. De novo, quem perde são as crianças. A convivência harmônica entre os adultos é a melhor escolha.
O quanto é papel da madrasta e o quanto é do pai fazer com que se estabeleça uma boa relação com os enteados?
O pai acaba sendo o que uniu a madrasta e as crianças. É o vínculo de onde essa relação pode nascer. Acredito que as madrastas precisam encontrar uma linguagem e o seu próprio relacionamento com seus enteados, mas isso sempre vai começar no pai (falando em casos heteroafetivos) ou pela mãe (para casais homoafetivos).
A madrasta tem seus sonhos, planos e vontades à parte do relacionamento. Como desconstruir a ideia de ser a “segunda” ou a “terceira” mulher na vida de alguém e não se sentir preterida?
Ser a segunda esposa pode gerar essa sensação, sim. Já me senti assim. A sensação é de que a graça do começo não existe mais, as descobertas não são novas, é como se a pessoa já tivesse vivido uma primeira temporada e você não estava nela. O tempo ajuda a mudar essa narrativa. Casar, separar, casar de novo e seguir com a possibilidade de refazer a vida afetiva não era uma possibilidade antigamente, mas agora é. Esse incômodo de se sentir como alguém que veio depois também vai acabar mudando.
Para assistir
Nem toda produção cinematográfica coloca as madrastas no papel de vilãs. Veja filmes em que as personagens ganham versões mais simpáticas:
- Lado a Lado, com Julia Roberts
- Encantada, animação da Disney de 2007.
- A Caminho da Lua, animação disponível na Netflix, indicada ao Oscar em 2021.
- This Is Us, série disponível no Prime Video, em que mostra a relação de irmãos com o padrasto.
Para seguir
@podcastmaternizando - de Leticia Tomazella, mãe, e Julia Rodrigues Mota, madrasta, que falam sobre a criação dos filhos pós-divórcio.
@maelabarismo - de Maya Eigenmann, com conteúdo focado no respeito nas relações familiares.
@luabarrosf - de Lua Barros, educadora parental e especialista emocional, que fala de parentalidade de forma ampla e inclusiva.
Com a palavra, as leitoras
Madrastas não são as mães, mas, ainda assim, estão presentes na criação dos enteados. Afinal, qual é o papel delas na família? Levamos a questão para debate no Grupo de Mães Donna no Facebook (acesse em gzh.rs/grupomaesdonna). A seguir, veja alguns dos depoimentos das nossas leitoras:
Tenho uma enteada maravilhosa! Nos conhecemos quando ela estava completando 11 anos, e hoje tem 21. Nossa relação sempre foi de muito respeito e carinho. Nunca me senti no papel de educá-la, mas sempre dei meus palpites para o pai dela, em particular, na maioria das vezes a apoiando. Vivemos em harmonia, e as irmãs são apaixonadas pela mana grande. Minha filha mais velha inclusive desenha a família com a mãe da minha enteada e o padrasto dela. Ou seja, minha enteada tem duas mães e dois pais.
Cláudia, de Porto Alegre. Mãe de duas meninas e madrasta de uma jovem adulta.
Antes de qualquer coisa, existe respeito, somos todos amigos e nos relacionamos exclusivamente por causa do meu enteado. Quem o educa é o meu marido e a mãe: o máximo que faço é ajudar com algum conselho e recebê-lo com alegria nos dias em que ele vem à minha casa. Em todos os planos da família, ele está incluso. Acredito que a forma como nos relacionamos é um ótimo jeito de educar, ensinando que o diálogo e o respeito devem sempre ser a opção.
Verônica, de Canoas. Mãe de um menino e uma menina e madrasta de um adolescente.
Meu papel é ter coerência com o diálogo e a prática, ser uma influência positiva. Temos uma relação familiar diferente da que eles vivenciam na outra casa – sem certo ou errado, apenas diferente. Buscamos fazer com que o ambiente seja o mais sadio e amoroso possível. Com o passar do tempo, fui tendo mais clareza de que minha influência é através do exemplo, e não da discordância. Ser madrasta é um desafio, mas, ao mesmo tempo, um presente perante tanto aprendizado.
Natalia, de Porto Alegre. Mãe de dois meninos e madrasta de um adolescente e de uma menina.
Quem educa é a mãe e o pai. A madrasta tem que saber o lugar dela, ser amiga. Precisa conquistar o seu espaço respeitando o dos outros. Sou madrasta e não me envolvo na educação dos meus enteados. Recebo eles muito bem, nunca tive problema com eles ou com as mães, por saber respeitar. Amor e respeito é a base para toda e qualquer relação.
Ana, de Navegantes (SC). Mãe de uma menina e um menino. Madrasta de duas jovens adultas e de um menino.