Patrícia Lima, Especial
Sabe aquela sua amiga que ficou desempregada e acabou se saindo superbem como consultora independente? E a vizinha professora que, na aposentadoria, descobriu que gostava mesmo era de plantas e abriu uma floricultura? E aquela prima que era executiva de uma grande empresa e largou tudo para vender cupcakes?
Histórias assim são cada vez mais comuns no nosso dia a dia. No começo, até poderia parecer loucura. Hoje, começamos a entender que o empreendedorismo feminino é um movimento sem volta, capaz de promover transformações sociais e de garantir mais liberdade e independência para mulheres de todas as idades.
Percebendo o crescimento desse fenômeno, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu, em 2014, o 19 de novembro como o Dia Global do Empreendedorismo Feminino. A iniciativa surgiu para lembrar o tema e reforçar o suporte às mulheres que estão à frente de novos negócios. Todos os anos, eventos em diversos países articulam e mobilizam redes de pessoas e organizações para debater o futuro e os desafios de quem decide empreender.
A presidente da Associação de Mulheres de Negócios e Profissionais de Porto Alegre (BPW), Lessandra Fraga, afirma que 2019 foi o ano em que mais mulheres procuraram a entidade para solicitar orientação na transição de carreira rumo ao empreendedorismo. Segundo ela, a estagnação econômica aliada ao alto índice de desemprego no país tem feito muita gente buscar uma alternativa de trabalho independente. A aprovação da reforma da Previdência também está fazendo as mulheres buscarem no negócio próprio um complemento para a aposentadoria.
– Muitas também empreendem por que percebem as mudanças no mundo, veem o fim próximo de muitas profissões, e estão arriscando enquanto há tempo. Muitas delas também desejam mudar de vida, sair do esquema tradicional de trabalho para serem mais independentes – comenta Lessandra, que preside a organização não-governamental que tem representação em uma centena de países e busca o crescimento das mulheres pelo aperfeiçoamento profissional.
De acordo com números de 2016 da última pesquisa Global Entrepreneurship Monitor (GEM), realizada pela Global Entrepreneurship Research Association, em parceria com o Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP) e o Sebrae-RS, a taxa de empreendedorismo total no Rio Grande do Sul é de 26%, bem abaixo da taxa nacional, que é de 36%. Esse percentual totaliza cerca de 1,9 milhão de gaúchos, entre os quais 44% são mulheres – número que vem crescendo de forma expressiva.
Muitas também empreendem por que percebem as mudanças no mundo, veem o fim próximo de muitas profissões, e estão arriscando enquanto há tempo. Muitas delas também desejam mudar de vida, sair do esquema tradicional de trabalho para serem mais independentes".
LESSANDRA FRAGA
Presidente da Associação de Mulheres de Negócios e Profissionais de Porto Alegre
Para a diretora da consultoria Lee Hecht Harrison na Região Sul, Rose Russowski, esse movimento é mais evidente na faixa etária entre os 40 e os 50 anos, idade na qual as mulheres estão mais dispostas e preparadas para mudar de carreira e empreender.
– É cada vez mais comum ver mulheres nessa faixa de idade se apaixonando por novos projetos e buscando atividades profissionais que façam sentido para elas. É uma espécie de voz interna que chama para um trabalho que dê mais prazer e que tenha mais significado – revela Rose.
O desejo de ter uma vida equilibrada, com mais flexibilidade de tempo para si e para a família, é uma das motivações mais fortes para que uma mulher decida empreender. Por outro lado, um dos maiores obstáculos é justamente a família, cujo apoio é fundamental na tomada de decisão por uma carreira independente ou um negócio próprio.
– Antes de mais nada, a mulher tem que avaliar se quer mesmo empreender e se está disposta a pagar o preço, que normalmente é trabalhar mais e correr mais riscos. Muitas vezes, se o que ela realmente deseja é apenas uma vida mais equilibrada e com mais tempo livre, o empreendedorismo pode ser frustrante – pontua Rose.
Empreender para ter um mundo maior
A relação da arquiteta Ana Cristina Gomes com o empreendedorismo começou cedo. Depois de trabalhar em escritórios de Arquitetura na Inglaterra, no Rio de Janeiro e em São Paulo, ela abriu, em Porto Alegre, no final dos anos 1970, o seu próprio escritório. E foi feliz com o negócio até o final dos anos 1990, coordenando obras, construindo projetos comerciais, casas e tudo o mais que chamasse sua atenção.
O trabalho em ritmo frenético, muitas vezes, sequer permitia que ela viajasse com a família de férias. Veio então o desejo de se libertar do que ela mesmo havia construído. A arquiteta ainda amava ser o que era, mas desejava outros desafios e um estilo de vida menos exigente. Aos 49 anos, havia chegado o momento de Ana Cristina empreender de novo.
Em uma viagem com a família para a Espanha, conheceu um produto inovador: um piso cimentício com características muito específicas, de grande plasticidade, resistência e fabricado de forma quase artesanal. No que todo mundo viu apenas um revestimento diferente, ela enxergou a oportunidade de começar do zero.
Foi assim que Ana Cristina criou, em 1997, a Solarium Revestimentos Cimentícios. A fábrica que começou pequena agora tem unidades em Guaíba e São Bernardo do Campo, interior de São Paulo, e atende os mercados interno e de exportação. Na idade em que muita gente pensa em se aposentar, a empreendedora passa uma semana em Porto Alegre e outra em São Paulo, cuidando das vendas e da promoção da marca, além de gerenciar os demais detalhes administrativos do negócio. Abandonou uma rotina de obras e projetos que mal deixavam tempo para estar com a família, por uma vida mais equilibrada, em que o trabalho rende mesmo que ela esteja de férias, portando somente um notebook.
Mesmo já tendo experiência como proprietária de um negócio, viveu na pele os desafios de uma mulher empreendedora.
– Em vários momentos vi como precisamos ser fortes para empreender. Quando fui abrir conta de pessoa jurídica no banco, pressupunham que, por ser mulher, abriria uma confecção. Ouvi de muitas amigas que não deveria trabalhar, já que meu marido tinha um bom salário, e que não cuidava bem dos meus filhos – relembra Ana Cristina.
Sobre abrir seu próprio negócio para buscar a realização profissional na maturidade, ela ressalta:
– As mulheres são rotuladas pela sua idade, o que é muito ruim.
A inatividade é um retrocesso e por isso quero morrer trabalhando. Em um outro ritmo, com algo que me realize. Ficamos velhas quando o nosso mundo diminui. E trabalho para que meu mundo seja cada vez maior.
Contra a dinâmica do mercado, crie a sua própria empresa
O encontro das sócias Luciana Ceccon, 38 anos, e Tânia Schirmer, 58, foi um desses acasos que, de tão certeiros, nem parecem acaso. Funcionária na área de Marketing de uma marca de roupas de alcance nacional, Luciana, com formação em Publicidade, sentia-se cada vez mais aprisionada pela rotina corporativa das metas, cobranças e resultados. Já Tânia, uma das primeiras consultoras de moda e estilo do Rio Grande do Sul, não via mais sentido na indústria da moda, que nem de longe satisfazia suas convicções sobre vestir-se bem, com elegância e consciência. O encontro das duas ocorreu durante um projeto na empresa em que Luciana trabalhava.
O resultado foi a criação da Was, marca de vestuário clássico, de altíssima qualidade e design perene, que propõe a valorização de um produto que não perde a validade conforme os humores das tendências.
Em dois anos e meio de existência, a Was (abreviatura para We Are Simple, nós somos simples, em inglês) lançou sete coleções que, segundo as sócias, conversam umas com as outras, para que a cliente possa usar as peças em diversas combinações. Fruto do debate entre as duas e de muito estudo e estratégia, as roupas deixam o mínimo de sobra para serem produzidas, reduzindo o impacto do lixo têxtil. Ao mesmo tempo, a Was construiu uma cadeia de fornecedores, como costureiros parceiros, que recebem valores justos pela produção de peças em baixa escala, em processo quase artesanal.
Enquanto a reportagem de Donna fazia esta entrevista, a primeira loja da marca era montada na altura do número 898 da Rua Mariland, no bairro Auxiliadora, na Capital. A inauguração acabou de rolar, na última quarta-feira.
Sabendo claramente o que queriam fazer, as duas partiram para a ação. Traçaram um plano de metas, estimaram o investimento necessário e calcularam em quanto tempo o projeto deveria começar a dar retorno.
– Um dos grandes segredos do empreendedorismo é planejar, se organizar e traçar metas. E, claro, saber que nem sempre o planejamento dá certo – diverte-se Tânia.
Pouco tempo depois de abrir a empresa, Luciana engravidou. Com mais flexibilidade de tempo, ela hoje administra com tranquilidade e serenidade a rotina com o filho pequeno. Sem nunca esquecer dos enormes desafios que as duas ainda precisam enfrentar em uma empresa jovem e cheia de objetivos. Um dos segredos, diz ela, é ter foco e organização.
– Também é muito importante que a marca seja coerente e que o propósito da empresa seja o propósito de vida da empreendedora.
Seguir modismos não consolida um empreendimento. É claro que temos que estar ligadas nas tendências, mas o importante é ser coerente com o que acreditamos, com aquilo que somos – completa.
Demissão, insatisfação e sonhos com sabor de queijo e tomate
Era uma noite chuvosa na zona sul de Porto Alegre. Cibele Costa, 43 anos, acabara de ser demitida da farmácia em que trabalhou por 13 anos. O chão sumiu sob seus pés. Como sustentaria a filha? Como terminaria de pagar a faculdade de Administração, que estava na metade? Aos prantos, chamou um motorista de aplicativo e correu para a casa da irmã, Adriana Duval, 40 anos. “Mana, fui demitida. E agora?”. A resposta deu origem à primeira pizzaria orgânica certificada do Brasil, a Tra Sorelle Pizzas Orgânicas, aberta há pouco mais de dois meses, no bairro Ipanema.
“Tu não querias empreender? Eu te ajudo”, disse a mana, que também vivia um momento profissional complicado. Servidora pública que atuava em um grupo voltado à gestão socioambiental, mantido por uma instituição bancária, viu o setor ser extinto e licenciou-se para um mestrado. Cibele era a mestre-cuca da casa, responsável pelas delícias dos almoços de domingo e pelos bolos e salgados das festas.
– A ideia sempre foi fazer alguma coisa relacionada com comida.
Como a nossa família ama pizza, essa foi a primeira opção – relembra Cibele. – Achei a ideia da pizza boa, mas queria fazer alguma coisa que me mantivesse conectada com os projetos ligados à sustentabilidade, pois sou apaixonada pelo tema – destaca Adriana.
Antes de mais nada, a mulher tem que avaliar se quer mesmo empreender e se está disposta a pagar o preço, que normalmente é trabalhar mais e correr mais riscos".
ROSE RUSSOWSKI
Consultora de carreira
Pizza orgânica foi a junção das paixões das duas irmãs. Aliás, elas estão impressas no nome do negócio, “entre irmãs”, em italiano. Cibele começou fazendo pizzas com ingredientes orgânicos adquiridos pelos contatos que Adriana havia feito através do banco. A produção era improvisada em casa e vendida na escola do filho de Adriana. A mão de Cibele era tão boa que a qualidade superior dos insumos orgânicos foi valorizada.
Em pouco tempo, elas já tinham uma rede de clientes, para quem entregavam um box com pizzas congeladas. Para obter a certificação nacional de orgânicos, muitos alvarás e procedimentos eram obrigatórios – o que favoreceu a abertura da pizzaria para o público.
O negócio, apesar de jovem, cresce em ritmo acelerado. Cibele fez cursos online e presenciais com um pizzaiolo italiano que a ensinou a extrair todo o sabor e textura que a farinha orgânica e os fermentos naturais poderiam oferecer. Adriana já tem articulada uma rede de mais de 60 fornecedores que entregam desde um queijo colonial especial até os tomates e temperos que fazem a diferença no sabor das pizzas. Um novo forno, que reproduz as condições de temperatura dos melhores fornos a lenha e de pedra, já foi adquirido.
Segundo as irmãs, o segredo para que as mulheres tenham sucesso como empreendedoras é cercar-se de pessoas que possam abraçar com elas os projetos, acreditando nas ideias e pegando junto na execução. Para elas, esse apoio estava ali mesmo, na família.