Patrícia Gomes Nunes, 45 anos, é daquelas mulheres que se definem como “loucas por sapatos”. No closet, os pares se multiplicam pelas prateleiras – principalmente os modelos com salto. Só que a pandemia forçou uma mudança nessa relação de amor. Os modelos estilosos – e nem tão confortáveis assim – abriram espaço para a praticidade dos tênis. E ela confessa: está aprendendo a curtir esse período de liberdade para os pés.
— Os tênis são os meus melhores amigos. É um bate-volta, vai a pé, já faz a caminhada, vai no súper e deu. Quando estou em casa, uso um chinelo mais estilosinho — conta Patrícia. — Quando a pandemia passar, vou seguir usando salto, mas acho que com outra perspectiva. Não quero voltar a castigar tanto os meus pés.
Foi na chegada aos 50 que Sonia Achá Kahl passou a valorizar ainda mais o conforto. E o período em casa só veio para confirmar o que a tradutora de 54 anos já sabia: seguirá investindo em calçados que aliem design e pegada comfy para se sentir bem e bonita.
— Usei salto uma vez durante a pandemia e tropecei de tão mal acostumada que estava. Comprei apenas sapatos baixos e confortáveis nos últimos meses, sempre online — explica ela, que faz questão de apostar em modelos autorais, como os da marca gaúcha Dona Rufina.
Você se identificou com as histórias de Patrícia e Sonia? Seu apego com sapatos pode até ser um pouco diferente, mas é impossível negar um fato: o confinamento mudou nossa relação com os calçados e impulsionou a busca de conforto para os pés, até mesmo para as apaixonadas por um saltão. E não só isso: impactou a produção das marcas que precisaram se reinventar, se jogar na pegada comfy e suprir as necessidades das mulheres que estão vivendo basicamente entre quatro paredes.
— A tendência do conforto é anterior à pandemia, da mistura do streetwear, do sportwear. Mas agora impacta um universo ainda maior, muitas mulheres estão repensando o que faz mais sentido usar. O público dita muito o caminho das marcas — opina Patricia Pontalti, consultora de moda e colunista de Donna.
Reinvenção na indústria
Não é novidade que o coronavírus impactou diretamente o mercado fashion – e o segmento calçadista apareceu entre os mais afetados. Basta olhar os dados da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados, a Abicalçados: em 2020, a produção caiu 18,4% em relação ao ano anterior, foram gerados menos empregos e a exportação também teve queda de 18,6%. Mesmo para as grifes que já surfavam na tendência comfy, os últimos meses ajudaram a recalcular a rota, avalia a consultora e especialista em negócios de moda Andressa Rando Favorito:
— Quem não tinha o conforto como foco precisou entrar nesse nicho sem perder a essência da marca. Mesmo que as mulheres usem mais chinelo, pantufa ou tênis agora, não é um modelo qualquer, pode ter uma pegada fashion. E quem já investia no conforto precisou realinhar o desenvolvimento do produto, das coleções e estruturar a venda online. É um desafio.
Foco no comfy
Grandes marcas como Schutz e Arezzo, reconhecidas por seus sapatos mais sofisticados, lançaram linhas com chinelos peludos, estilo pantufa, para ficar em casa. Já a Piccadilly, apesar de ter tradição no segmento comfy, viu seu público optar por calçados mais baixos, que servissem tanto para o home office quanto para aquela rápida ida ao supermercado. Diretora de desenvolvimento de produtos da marca, Ana Carolina Grings conta que as coleções passaram a ter ainda mais opções de sapatilhas, tênis e papetes, além de linhas compostas por pantufas e chinelos para encarar o confinamento.
— Mudamos, mas seguimos nos preocupando com a autoestima da mulher. As pantufas que fizemos, por exemplo, trazem modelos mais básicos e também aquelas com brilho. O calçado continua nos ajudando a nos sentir bem, a aumentar a confiança — define a diretora da Piccadilly.
Quem não tinha o conforto como foco precisou entrar nesse nicho sem perder a essência da marca. Mesmo que as mulheres usem mais chinelo, pantufa ou tênis agora, não é um modelo qualquer, pode ter uma pegada fashion.
ANDRESSA RANDO FAVORITO
consultora e especialista em negócios de moda
Destaque quando o assunto é conforto para os pés, a Usaflex também entrou na mesma batida: dos materiais com toque macio ao design, adaptou sua produção para conquistar um público que passou a comprar cada vez mais online. O desafio era garantir, por meio das imagens do site, a sensação de aconchego, já que “calçar” o sapato em uma loja física virou raridade. Também foi a oportunidade de se consolidar entre clientes mais jovens e mostrar que conforto e estilo podem caminhar juntos.
— A pandemia confirmou que o calçado não precisa ser feio, pode ser fashion e confortável. No e-commerce, atendemos uma faixa etária mais baixa do que nas lojas físicas. Vemos esse rejuvenescimento — explica Fernando Eduardo Müller, diretor de desenvolvimento de produto da Usaflex.
E as marcas autorais? Seguem na labuta, enfrentando ainda mais desafios durante esse período difícil. As grifes de menor porte, além da adaptação na produção, viram feiras e eventos serem cancelados, o que impactou diretamente nas vendas. Foi preciso estruturar ainda mais o comércio online e abusar da criatividade. Idealizadora e designer da Dona Rufina, Lu Bulcão conta que convidou as clientes a cocriar junto da marca o seu próprio sapato.
— Acolhemos o que elas estavam sentindo. O que está nos dando força e ânimo de seguir em frente neste momento? Nos sentirmos úteis, criativas, sermos desafiadas e nos sentirmos vivas ao produzir coisas novas — diz a empreendedora, que viu crescer o interesse por sapatilhas em couro e lã no último ano.
Outra grife autoral que seguiu firme foi a Ipadma, de Três Coroas, reconhecida por aliar conforto, sustentabilidade e estilo. Ana Iwancow, que está à frente da marca junto da designer Sirlei Feiten, explica que a pandemia acabou sendo o momento de reorganizar as linhas de produtos e focar ainda mais na essência comfy. Os modelos tipo tênis, apenas de enfiar o pé, ficaram entre os mais pedidos:
— São calçados coringa, que têm o conforto como ponto forte, independentemente de estilo. Combinam com looks despojados, comfy e jeans. Contam com design sustentável e baixo impacto ambiental, da criação à produção — ressalta ela.
Para ficar de olho
Papetes, clogs, sapatilhas, mocassin, tênis e botas sem cadarços, fáceis de vestir e que “abraçam o pé”. Para além das pantufas e dos flip flops (estilo chinelinho), esses são alguns dos modelos que devem seguir forte na carona do comfy. O salto plataforma, ou até um solado inteiro mais baixo, também ganha destaque. Os calçados precisam transparecer aconchego, leveza e conforto. Para isso, as grandes marcas adaptaram o design e investiram em materiais que evidenciassem esse “toque macio” – além de apostarem em tecidos com tecnologia antiviral.
Ana, da Piccadilly, conta que materiais hidratantes e flexíveis, com fios sustentáveis, ou que tenham tecnologias como palmilhas que estimulam a circulação sanguínea, conquistaram ainda mais espaço.
— As pessoas estão consumindo menos, mas melhor. Querem qualidade e durabilidade. Para o inverno, estamos apostando nas botas e nos tênis forrados com material térmico, que mantêm os pés aquecidos — afirma a diretora.
Já Fernando, da Usaflex, chama atenção para os modelos minimalistas e atemporais, com pegada ecofriendly. Solados de limpeza rápida, sapatos com menos detalhes, espuma para trazer aconchego e palmilha com elevação também estão em alta. Outros materiais que merecem destaque são os tecidos no estilo tricô, que trazem aquela sensação de aconchego principalmente em tênis e botas, como se fossem meias.
— Junto dos tênis easy fit, a papete vem crescendo bastante, mais esportiva. Tivemos que reforçar sandálias comfy, junto das rasteiras e sapatilhas. Isso tudo ficou mais forte — explica o diretor da Usaflex.
É o fim do salto?
Ok, você até gosta de um sapato confortável, mas é do time das que estão ansiosas para voltar a usar o saltão quando tudo voltar ao normal? Tudo bem! O fim do salto não está decretado.
— Ele vai voltar. Agora, não é o momento, mas, definitivamente, não é o seu fim. Há muitos significados junto do salto: estilo, empoderamento, sensualidade — pontua a consultora Patrícia Pontalti.
Os especialistas esperam até um movimento inverso: como há uma limitação, quando a situação estiver menos complicada poderemos ter um “boom” no uso de calçados mais requintados – e nas alturas.
— Talvez haja uma demanda reprimida. Só que a ideia do conforto veio para ficar, não há como negar. A pandemia trouxe abertura para repensar o comfy. Qual salto vou querer investir no futuro? A vida está mais focada no bem-estar, e a moda acompanha nesse comportamento — pontua Andressa, especialista em negócios de moda.
Pés saudáveis
A ortopedista Luiza Horta Barbosa, especialista em cirurgia do pé e tornozelo, conta que a mudança de hábitos em razão do distanciamento social impactou a saúde dos pés, mas não apenas por conta do uso recorrente de chinelos ou calçados rasteiros. O principal problema, segundo a médica, foram os excessos: sedentarismo ao extremo ou exercício demais.
— Extremismo traz problemas. Vejo cada vez mais pessoas sedentárias, e também aquelas que decidiram se jogar na corrida ou em exercícios caseiros sem acompanhamento. A falta de atividade de quem está em home office, o próprio caminhar, isso tudo faz falta para o pé. Só que exercícios sem moderação também podem ocasionar lesões — explica.
O ideal é usar com moderação outros modelos, como salto ou chinelo, e focar no alongamento. Via de regra, é um erro é associar flexibilidade a ser saudável.
LUIZA HORTA BARBOSA
ortopedista
O diagnóstico de fascite plantar (processo inflamatório na fáscia plantar) e de fraturas por estresse (em decorrência de impacto recorrente e demasiado) têm sido comuns no consultório de Luiza. A dica da médica é incluir os alongamentos para o pé na rotina diária, seja com apoio do degrau da escada ou sentada com a ajuda de uma toalha, puxando a parte de cima da planta do pé com o joelho esticado. Outro alerta: nem sempre os sapatos flexíveis são os mais indicados pensando na saúde.
— Calçados com solados mais rígidos, que não sejam muito afunilados na frente, com boa absorção de impacto e palmilha de qualidade são os melhores. O ideal é usar com moderação outros modelos, como salto ou chinelo, e focar no alongamento. Via de regra, é um erro é associar flexibilidade a ser saudável — defende Luiza, que integra o corpo clínico da Ortopedia Mariland.