O vestido é a roupa favorita de Andrissa Bruzza Pereira. No dia a dia, a gerente de marketing de 40 anos, conhecida por Drika, opta pelos tipos mais leves, com pegada hippie chic. Quando vai curtir a noite com amigas ou subir ao palco para cantar junto de sua banda, assume o estilo rock & roll: muito preto, rendas e acessórios metalizados. Mas o look não é o predileto apenas por ser fresquinho e confortável. É a peça com o melhor caimento no corpo desde que Drika foi vítima de um atropelamento – a porto-alegrense teve parte da perna esquerda amputada aos 23 anos e, hoje, usa prótese.
De lá para cá, seu estilo mudou. Ela não abriu mão das calças e dos shorts, mas sempre compra números maiores e recorre à costureira para ajustar o item. Já os saltos e chinelos saíram do guarda-roupa de vez. Se antes uma hora no shopping resolvia o look para a festa do dia seguinte, hoje esse processo é bem mais demorado, pois boa parte das roupas precisam ser remodeladas – por isso, o sob medida virou seu queridinho. Mesmo assim, ela conta que não abriu mão de imprimir sua personalidade por meio do que veste. Exibe tatuagens, gosta de piercings, combina a muleta colorida com o look do dia. E mais: faz questão de expor a prótese ao usar seus vestidos justamente para instigar os outros a pensarem sobre a diversidade.
— Minhas roupas são um convite ao questionamento, sou sempre o centro dos olhares por onde passo. Precisamos falar e pensar sobre a vida das pessoas com deficiência, a nossa existência, e faço isso através da moda — defende. — Quando me olho no espelho, gosto do que vejo. Me sentir bem com o que visto faz toda a diferença para sair mais confiante. Quero que as pessoas me vejam e se inspirem.
Assim como Drika, as outras três mulheres que você conhecerá nesta reportagem precisam garimpar (e muito) para encontrar peças que contemplem seus corpos e revelem seu estilo. Apesar de suas diferenças, todas concordam: se sentir bonita e poderosa com o look é importante para a autoaceitação. E o processo de se reconhecer nas próprias roupas está longe de ser algo fútil e desnecessário, até porque, explica a psicóloga Mariane Rodrigues, não há como escapar deste confronto diário e desafiador com o guarda-roupa.
— Impacta no bem-estar, no significado que vai dar para a sua condição de vida, de se empoderar de quem ela é. Ela não é só uma roupa, não é só um corpo, mas depende de uma roupa para se colocar nos ambientes. Essa construção exige pensar que moda inclusiva não é só oferecer uma roupa mais acessível, mas funciona como um recado para a sociedade enxergar essas pessoas de uma outra forma — afirma Mariane, que está à frente da TN&S, consultoria especializada em diversidade e acessibilidade.
Roupas para todas?
O mercado da moda, a passos lentos, tem se movimentado para produzir peças que incluam diferentes tipos de corpos. Segundo dados do IBGE, 24% da população (cerca de 45 milhões de pessoas) tem algum grau de deficiência ou síndrome. Pelo menos 12,5 milhões, ou seja, quase 7% da população, apresenta grande ou total dificuldade para enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus – além das pessoas com deficiência intelectual. É de olho nessa fatia dos brasileiros que as grandes marcas têm investido em coleções pensadas para a diversidade, ao encontro de um discurso de inclusão que encontra cada vez mais eco na sociedade.
Em dezembro, por exemplo, a Renner apresentou seu primeiro lançamento nessa pegada: uma linha de lingerie com peças confortáveis e funcionais desenvolvidas para mulheres com mobilidade reduzida.
— Estamos trabalhando nosso processo criativo e de modelagem para que uma maior parte das peças tenha facilidade ao vestir, incluindo mais aberturas e elásticos, com o objetivo de darmos mais opções de moda e estilo para essas clientes — explica Fernanda Feijó, diretora de estilo das Lojas Renner.
No Estado, uma das referências quando o assunto é moda inclusiva é Vitória Cuervo. A gaúcha foi pioneira por aqui ao apostar em coleções adaptáveis para pessoas com e sem deficiência desde 2010. Embora esteja imersa nessa área, a estilista reconhece: é difícil afirmar que há um mercado de moda inclusiva no país. Primeiro, porque essas coleções, conta Vitória, costumam ser iniciativas de pequenas grifes, geralmente disponíveis apenas no e-commerce – e muitas não conseguem se manter ativas por um longo tempo. Segundo, porque o movimento das grandes redes nesse segmento ainda é tímido, o que barra a democratização das peças.
— A moda inclusiva é uma roupa pensada para todo mundo. Apostar em um recorte de blusa que fique bem numa pessoa de pé ou sentada, blusas com mangas longas, mas na medida para não atrapalhar a movimentação, bermuda que tenha velcro ou zíper discreto para passar a sonda, enfim, as opções são muitas. Não é tão complexo, mas o mercado da moda precisa querer olhar para esse público. Já passou da hora — defende Vitória. — Deparei com muitas mulheres que se achavam invisíveis. Quando elas se encontram na moda, se sentem valorizadas.
Sob medida para ela
A estudante Francielle dos Santos Borges, 21 anos, sabe que concentra os olhares por onde passa. Ela tem nanismo, é apaixonada por moda e se define como “extremamente vaidosa”. Já desfilou para marcas de moda inclusiva, mas conta que não é uma consumidora: acredita que o mercado ainda é restrito, e essas roupas não estão acessíveis naquela voltinha no shopping ou nas lojas de bairro. Francielle passa pelo perrengue de comprar peças comuns e torcer para que tudo caia bem após cortes e ajustes na costureira – o vestido de crochê que ela veste nas fotos foi feito pela mãe para garantir o bom resultado. E o desafio não é apenas a adaptação das roupas: para uma jovem de 1,10m, é muito difícil encontrar looks que se aproximem do seu tamanho e que não sejam infantis. Além disso, outra dificuldade são os calçados. Como o pé é tamanho 30, os únicos pares que costumam cair bem sem parecer serem feitos para crianças são as sapatilhas e alguns tipos de tênis. Para driblar a falta de opções, a família fez um molde do pé de Francielle e manda fazer botas e sapatos de salto sob medida.
— É através da moda que consigo me expressar e dizer: sou uma mulher. A roupa é essencial para mim nesse sentido, eleva minha autoestima enquanto mulher, não sou uma criança. Calças e blusas consigo ajustar mais fácil, mas vestidos, saias, macacões, tudo isso preciso mandar fazer. Já me frustrei por não me sentir contemplada nas lojas. Hoje, me considero bem-resolvida — pontua.
Quando sai às ruas, ela conta que é comum as pessoas pararem para pedir fotos suas. A baixa estatura não passa despercebida, gera curiosidade e a estudante diz não se incomodar. Quando criança, brincava que era famosa, já que chamava tanta atenção.
— Na maioria das vezes acho engraçado, não vejo problema. Mas sei que tem gente que se incomoda, cada um reage de uma forma. Decidi não tornar isso uma grande questão da minha existência e, claro, me achar linda na minha roupa me ajuda a ter mais autoconfiança para encarar essas pessoas — diz a jovem.
Resgate das raízes
Quando é encarada na rua, Natália Canto, 33 anos, costuma ter uma reação bem diferente de Francielle. Fica desconfortável, muitas vezes rebate os olhares e conta que já chegou a perguntar: “Está olhando o quê?”. A fonoaudióloga nasceu com uma uma alteração congênita na perna direita, que acabou ficando mais curta. E toda a vez que vai escolher um look, ela revela que o julgamento alheio a assombra:
— Essa questão da expectativa do outro pesa para mim, fico pensando no que vão falar. Quando me olho no espelho, arrumada, sinto um up dentro de mim, saio melhor para a rua. Mas estaria mentindo se dissesse que me sinto plenamente confortável em atrair todos os olhares. É difícil.
Natália revela uma relação de altos e baixos com o guarda-roupa. Sempre usou shorts, leggings, calças justas, isso até a adolescência – ela comprava as peças e mandava ajustar, processo que mantém até hoje. Foi nessa época que caiu a ficha: seu corpo era diferente e isso poderia causar estranhamento nas pessoas. Essa tomada de consciência fez Natália deixar de lado saias, vestidos e peças mais ajustadas em suas curvas. Até hoje, ela arrisca uma ou outra saia mais longa. E só.
— Às vezes, sou olhada de maneira invasiva, por isso tento não chamar tanta atenção para a perna. Não escondo, mas não fico focando ali porque muitas vezes me sinto desconfortável. Opto por peças mais lisas, cores neutras e folgadas embaixo — justifica.
Mas, há cerca de cinco anos, seu estilo mudou. Foi nessa época que se apropriou das raízes africanas e incorporou ainda mais a cultura afro nas roupas. Lenços, turbantes e estampas para dar um toque no visual ganharam espaço na vida de Natália – não é à toa que ela escolheu um look nessa batida, incluindo os acessórios, para ser fotografada para a reportagem. E isso fez diferença na autoestima: a fonoaudióloga passou a olhar o corpo, a existência enquanto mulher com deficiência e sua história com mais amor e orgulho:
— Comecei a me aceitar mais. Quando visto uma estampa africana é como se me sentisse 100% completa. É uma questão de identificação com o meu povo e comigo mesma.
Conforto e liberdade
Assim como Natália, Iolanda Berwanger de Farias passou a se sentir mais confiante com seu estilo recentemente. Há 25 anos, ela estava grávida e sofreu um acidente de carro que a deixou tetraplégica. Apesar da brusca mudança, a professora conseguiu levar a gestação adiante – e conta que a filha foi sua maior força para sair da cama e começar a se locomover numa cadeira motorizada.
— Tornar-se mãe já é uma grande mudança, e passei por tudo junto. Sempre fui vaidosa, usava saias, salto, e me vi por meses numa cama apenas de camisola. Quando ela passou a engatinhar, precisei ir para a cadeira e só usava roupa de moletom. Me sentia horrível, mas ver ela crescer era o que mantinha meu foco — lembra.
Com o passar do tempo, Iolanda, que está prestes a completar 50 anos, começou a buscar peças com as quais se identificasse mais – hoje, adora comprar pela internet. Malhas e blusas de tricô se tornaram queridinhas no guarda-roupa, por serem fáceis de vestir e confortáveis. Ela também gosta de camisas que valorizem o colo – na foto que você vê ao lado, optou por uma peça branca, além da calça flare de elastano. O jeans está entre os itens que Iolanda abriu mão, pela dificuldade de vestir, já que ela tem a ajuda de um cuidador diariamente. Sutiãs, conta, são um desafio de encontrar, pois o ideal é não ter o fecho com gancho atrás para não machucar as costas. Assim, os tops acabam virando a principal opção. Vestidos e saias ela nunca mais “teve coragem” de usar, mas não vê como um problema: acredita que reencontrar seu estilo é também respeitar seus limites.
— Não me enxergo mais nessas roupas. Talvez algum dia me desafie a usar, mas, hoje, não consigo. E tudo bem. Meu foco atual são peças que aliem conforto e que me sinta bonita — afirma.
A relação com a autoestima e com a moda teve uma virada quando a filha completou 18 anos. Carolina passou a incentivar a mãe a sair mais de casa, ir a shows, e Iolanda recuperou o gosto por se arrumar e se reconhecer como uma mulher bela. Por isso, diz ela, o processo de autoaceitação de cada pessoa deve ser respeitado. Apropriar-se de um novo estilo não é fácil, mas é libertador, afirma:
— A moda, nos sentir bonita, ajuda nesse processo de autoaceitação. Nos olhar com amor, nos mostrar para o mundo, isso dá vontade de viver. Não podemos perder isso de jeito algum.