Quando um fardo, um obstáculo ou uma tragédia pessoal aparece na vida de alguém, é relativamente comum que essa pessoa encontre consolo no desafio que a vida passará a ser a partir de então. Como se, em vez de uma fatalidade, a desventura representasse uma nova missão de vida.
Aos 23 anos, Paola Antonini não assume esse discurso com facilidade, embora ele pareça se encaixar na história dela como uma luva. Ou como a prótese nem um pouco discreta – brilhante, inclusive – que hoje substitui sua perna esquerda.
– Tem quem diga que foi uma missão. Eu não sei, não penso nisso. Foi, sim, um propósito que surgiu pra minha vida. Se foi uma missão, espero estar fazendo o meu melhor – ela divaga no lobby do hotel minutos antes de um evento promovido pela marca de cosméticos The Body Shop em Porto Alegre, um dos muitos destinos que teve a oportunidade de conhecer depois do acidente de 27 de dezembro de 2014, em Belo Horizonte.
Eram 5h da madrugada quando Paola e o namorado há apenas 12 dias, Arthur, carregavam as malas no porta-malas do carro para passar a virada de ano em Búzios. A metros dali, lomba acima, uma motorista de 24 anos sob influência de álcool tentou recolher o celular que caíra no piso do carro. Ela perdeu o controle do veículo e atingiu o casal. Arthur teve apenas ferimentos leves, mas Paola ficou prensada da cintura para baixo entre os dois carros.
O acidente com a jovem modelo repercutiu na imprensa e provocou compreensível comoção em Minas Gerais. Mas Paola começava, ali, a surpreender aos familiares recusando desde os primeiros minutos o papel de protagonista de dramalhão. Segundo a família, ela não só ficou consciente por horas até o socorro chegar como se encarregava de acalmar aos demais. Seu único cuidado era não olhar para a perna. Bastavam os olhos arregalados de todos que espiavam.
Prestes a entrar para cirurgia, Paola se deu conta de algo e puxou a manga de um dos médicos. Perguntou em bom mineirês:
– Doutor, eu não vou morrer, não, né? Porque, se eu for, não me despedi de ninguém, uai.
Tranquilizada pela equipe médica, Paola entrou na sala de cirurgia e saiu 14 horas depois. A perna esquerda não pôde ser salva. Foi amputada abaixo do fêmur. Os esforços para salvar a perna resultariam também em uma cicatriz enorme na perna direita, de onde os médicos retiraram uma veia para tentar transplantá-la, sem sucesso, ao membro comprometido.
– Tinha a Paola como uma pessoa muito positiva, mas tanto eu quanto os médicos estranhamos o quanto ela encarou a amputação com naturalidade. Só insistia que estava grata de ter sobrevivido. Alguns me disseram que isso acontece em alguns casos. A ficha só cair depois, e a paciente pode entrar em depressão. Eu deveria ficar preparada – conta Diva Antonini, mãe de Paola e de dois filhos mais novos.
Três anos depois, Diva ainda espera a depressão chegar. Paola, enquanto isso, começava a ser informada sobre o mundo das próteses, muletas, fisioterapia, acessibilidade e tudo mais. Teria de estudar a melhor opção para viver dali para frente.
– Noventa por cento das mulheres usam uma prótese que se assemelha muito a uma perna real. Disse logo de cara: “Ah não, não quero. Eu quero uma prótese bem de robô” – conta.
O modelo escolhido foi uma prótese eletrônica, que precisa ser carregada à noite. A parte superior, essa que Paola customizou recentemente com uma pintura brilhante, é encaixada à coxa a vácuo. Sua função eletrônica é responder dando resistência conforme os movimentos e a velocidade dos passos. O pé é reclinável, permitindo o uso de sapatos de salto. A tonalidade dele também permite que Paola se divirta pintando as unhas do pé de mentira.
O que veio a partir dessa decisão intuitiva mudou a vida da modelo. Segundo ela, as postagens no seu Instagram (@paola_antonini) começaram como uma simples forma de informar as pessoas de que ela estava bem. Todavia, o fato de ela exibir sua perna de ciborgue com shortinhos, saias e biquínis chamou a atenção de um tipo especial de seguidores.
A mãe, Diva, dá um exemplo:
– Recebemos uma mensagem de uma menina de 18 anos que havia amputado a perna aos 15 e não havia contado para ninguém de fora da família. Vivia usando duas calças, mancando, dizendo que estava com a perna machucada para os amigos e colegas. Ver a Paola fez com que ela deixasse de ter complexo. Ela recebe dezenas desses depoimentos por dia.
Paola passou a ser abordada nas redes sociais e nas ruas, com pessoas arregaçando as barras das calças para revelar suas próteses e trocar figurinhas. Crianças, quando a veem, imediatamente arregalam os olhos, apontam, querem tocar.
– Os pais ficam sem jeito, mas eu peço para que eles deixem a criança se aproximar e mexer. Dou conversa, digo que tenho perna de ferro, de robô, e elas acham o máximo. Acho importante deixar visível. Quando aquela criança enxergar de novo em outra pessoa, ela vai achar normal porque já conhece.
O telefone da modelo também passou a integrar a agenda dos médicos de Belo Horizonte. Ela é chamada para conversar com crianças que passaram ou estão prestes a passar por amputações. A maioria, pequenos pacientes de sarcoma, um tipo de câncer maligno que afeta articulações e não raro requer amputações na altura dos joelhos.
Segundo Fabrício Daniel de Lima, diretor do Instituto de Prótese e Órtese de Minas, o astral e a persona de Paola ajudam. Pequena – ela tem 1m61cm, contrariando a impressão de muitos dos seus seguidores de que é um mulherão –, sorridente e falante, ela quebra o gelo exibindo a sua prótese para as crianças, perguntando de que cor elas vão querer o membro novo e tudo mais. Faz toda a diferença, para elas, ter referências de pessoas alegres e bem-sucedidas passando pelo que elas irão passar. Fabrício cita um famoso cantor que há décadas oculta ter uma prótese em vez de uma das pernas:
– Fico pensando. Se ele fizesse um quinto do que a Paola faz, que revolução seria para a inclusão e autoestima dessas pessoas no Brasil.
Seu Instagram fez com que a modelo fosse convidada ao programa Encontro com Fátima Bernardes em março, apenas três meses do acidente.
Nervosa e ainda não muito segura de caminhar pelo palco, preferiu começar o programa sentada. A repercussão foi imensa, e a quantidade de pessoas a fim de trocar experiências ou apenas curiosas sobre o seu dia a dia levou Paola a começar um canal de YouTube – fundado em agosto de 2015, hoje ele conta com 192 mil inscritos. Ali, nota-se que o tempo fez Paola deixar a insegurança para trás: já apareceu dançando, fazendo academia, desfilando ou simplesmente de zoeira com o namorado – que sim, ficou e está do lado dela até hoje.
– O astral da Paola, eu já conhecia. Mas sabia que ela era uma pessoa muito vaidosa também. A minha preocupação era como ela encararia algo assim em seu corpo. Mas ela nem ligou. Quando acordou da cirurgia, ficou tão faceira de estar viva que nem conseguimos ficar tristes com o que aconteceu – conta o namorado.
Sobre a tal vaidade, Paola diz ter conservado essa característica, mas de forma diferente. Continua se arrumando por horas, mas também houve uma virada depois do acidente. Traços naturais do corpo que muitas mulheres enxergam como o pior dos defeitos – um braço assim, um nariz assado – deixaram de ter importância. Ela também percebe esse efeito nas suas seguidoras. Mulheres que antes encasquetavam em esconder uma parte do corpo em uma foto por se consideram imperfeitas, percebem o tamanho da besteira diante de alguém que não esconde, pelo contrário, a ausência de uma perna.
Também responsável pelo tratamento do ex-goleiro Follman, ex-atleta do Grêmio amputado após o acidente com o voo da Chapecoense, o médico Fabrício cita alguns dos percalços enfrentados por vítimas de acidentes com menos condições financeiras do que Paola. O primeiro deles é entrar na fila do SUS para obter uma prótese. A espera toma do paciente um tempo precioso que já poderia estar usado na recuperação e adaptação a nova rotina.
Depois disso, a qualidade da prótese oferecida pelo governo está bem longe dos modelos mais confortáveis, que custam de R$ 15 mil até R$ 400 mil. O de modelo de Paola custa cerca de R$ 100 mil. Só aí começam os problemas de acessibilidade nas ruas e calçadas das cidades brasileiras.
– Nossa! O que eu já caí de tombo por aí não é brincadeira. Vivo com o joelho ralado – conta Paola.
Requisitada a participar de eventos Brasil afora, seja para promover produtos ou dividir sua experiência, Paola se tornou embaixadora da marca islandesa de próteses Ossur e passou a reverter parte dos seus vencimentos para doar próteses de qualidade a crianças carentes. Em 2016, foi eleita musa dos Jogos Paralímpicos do Rio. Ganhou até uma prótese para corrida, segundo ela “muito mais difícil de usar do que parece”, mas segue tentando. Sua próxima meta é fundar uma instituição para quem também deseja ajudar pessoas amputadas. Em um horizonte próximo, pretende concluir a faculdade de Jornalismo – atualmente trancada em razão da rotina de viagens – e escrever um livro. Seria uma forma de falar um pouco mais sobre o lado difícil da sua rotina, aquele que não aparece nas fotos ou nos vídeos.
– Gostaria de contar o que eu passei. Quando posto uma foto entrando no mar no Instagram, é legal as pessoas enxergarem ali uma meta alcançada e se motivarem. Mas gostaria também de contar como foi difícil. O quanto me desaconselharam a pisar na areia. Como tremi o tempo inteiro de mãos dadas com o meu namorado – revela Paola.
De fato, a positividade de Paola faz a sua rotina parecer mais fácil do que é. Nas poucas horas em que Donna esteve em contato com ela, fica claro que nada é perfeito. Era um dia em que a coxa acoplada à prótese estava especialmente dolorida. Depois da entrevista e das fotos para esta reportagem, Paola subiu para o quarto para descansar sem ela nos 20 minutos que restavam até um evento de horas.
– É verdade. A vida dela não é fácil, não. Por 20 anos, ela colocou peso em uma parte do corpo que não está mais lá. Isso sempre vai ser complicado, por melhor que seja a prótese. Tem vezes que a gente precisa pegá-la pelo braço e dizer: “Paola, você voltou de viagem agora. Precisa parar um pouco senão vai se machucar.” Mas adianta pouco (risos). Ela é ligada no 220 – conta Arthur.
O segredo parece ser manter problemas sempre da cintura para baixo, sob a prótese brilhante. Jamais do pescoço para cima.
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