A la Carlos Drummond de Andrade, Lelei Teixeira foi ser gauche na vida. Ela e a irmã Marlene, ambas com nanismo, sempre sentiram na pele o que é viver à margem, fora do padrão, às avessas num mundo repleto de preconceito. Acabaram se apropriando da palavra de origem francesa, presente nos primeiros versos do Poema de Sete Faces, como uma brincadeira para tornar mais leve o fato de serem o centro dos olhares por onde passavam.
– Ouvi inúmeras vezes: "Tão pequena e tão inteligente". Ser hipervalorizada como forma de compensação, a tal admiração constrangedora. As pessoas não se desprendem do tamanho e decidem estipular ganhos, supervalorizar o que faço. O poema do Drummond é quase um estímulo de, apesar dos olhares, da curiosidade, ter forças para ir – explica a jornalista gaúcha.
Por isso, o título de seu primeiro livro não poderia ser outro: E Fomos Ser Gauche na Vida (Pubblicato Editora) chegou às livrarias neste mês. E o tema da obra, conta Lelei, também não poderia ser outro. A jornalista lança mão de sua história, desde a infância em Jaquirana até a mudança para a Capital, para refletir sobre capacitismo, preconceito, acessibilidade e quebrar tabus sobre o nanismo.
– Percebi que as pessoas queriam ouvir sobre isso e tive certeza de que precisava ocupar esse espaço, não ter medo de falar. Os anões historicamente foram tratados como piada. Há uma infantilização, já fui pega no colo por uma pessoa que disse que "não resistiu"– reforça Lelei. – Não somos bonecos, crianças. Hoje, existe um movimento contra essas posturas, mostrando que nossa diferença está ali e isso não impede nada. Estava num baile uma vez e uma pessoa perguntou, espantada, se eu gostava de Carnaval. Sim, eu gosto (risos). Por que não, né?
O projeto nasceu de um desejo compartilhado por Lelei e pela irmã e deveria ter saído da gaveta há muitos anos. Mas a vida atarefada das duas – uma jornalista reconhecida no Estado, a outra, professora e pesquisadora da área de Letras – postergou a obra escrita a quatro mãos. Quando as duas decidiram que era a hora certa, Marlene foi acometida de um câncer, vindo a falecer em 2015. Um ano depois da morte da sua companheira de vida – as duas moravam juntas e eram conhecidas por uma parceria invejável –, Lelei deu início ao blog Isso Não é Comum. Colocar em palavras tudo o que sentia foi tão libertador que ela passou a rabiscar as páginas de E Fomos Ser Gauche na Vida. Com a pandemia, o confinamento serviu de convite para finalizar essa história e olhar para o futuro com sensação de dever cumprido.
– A saudade é dilacerante no início, mas, depois, se transforma em um sentimento bom, uma saudade que faz mais que sofrer, afaga – desabafa.
Desafios ao longo do caminho
Mesmo sem lançamento oficial em razão da pandemia, o que deve ocorrer quando a situação sanitária se estabilizar, o livro vai pautar dois eventos da programação da Feira Literária de Três Coroas/RS – um deles, inclusive, marcado nesta sexta-feira (veja mais detalhes no fim do texto). Em suas 166 páginas, as memórias de Lelei evidenciam uma sociedade que não sabe acolher a diferença. Se em casa ela era tratada como qualquer outra criança, no primeiro dia de escola saiu correndo ao se sentir violada com os apontamentos de "olha ali uma anãzinha". Ela revela que também enfrentou dificuldades para falar abertamente sobre nanismo, refletir sobre sua condição, inclusive nos papos com Marlene. Quando organizou suas percepções, perdeu o medo de encarar o assunto e suas consequências. Foi nesse processo que, ao longo dos anos, desenvolveu asco do termo "superação", ela conta:
– É uma palavra que delega, que te responsabiliza pela tua condição. O nanismo não se supera. Meu tamanho é 1,10m e eu vivo assim. Não vou superar nada e ninguém pode exigir isso. Temos que viver com a diferença, aprender a olhar para o outro com a diferença. Não é superar, e isso é capacitismo também. Na maioria das vezes, é uma palavra cruel, ela exige de ti e não dá nada em troca. Parece que só superando nossas dificuldades vamos viver bem.
A jornalista destaca que o primeiro contato com pessoas desconhecidas, principalmente na infância e adolescência, causava constrangimento. O recreio, por exemplo, era hora de ficar cercada dos irmãos e primos, embora ela tivesse algumas amizades justamente pelo fato de ser estudiosa e disposta a ajudar. Já na vida adulta, o desafio ainda é conviver com piadas, risadas e comentários ao andar na rua. Mas não só isso: pegar ônibus, ir ao supermercado, usar banheiros fora de casa e por aí vai. Lelei não dirige e explica que sobe os degraus do ônibus de joelhos, além de ter dificuldade para se equilibrar no trajeto. No súper, o carrinho é alto e ela precisa de ajuda para pegar os itens das prateleiras. No fim das contas, costuma não fazer compras sozinha.
Já no uso de banheiros públicos o problema é justamente a pia. Em razão da altura, ela não consegue lavar as mãos. E é por isso que, para se sentir confortável em casa, investiu em um apartamento com parte dos móveis adaptados. Cama, cozinha, mesa, cadeira, escritório, tudo na medida para facilitar o dia a dia. Se surgir algum percalço, ela sobe em um banquinho e resolve o que precisa.
– Sempre me virei sem ajuda. Reconheço que hoje há um maior acolhimento das pessoas, mais gente cede o lugar no ônibus, se oferecem para ajudar. Mas ainda precisamos avançar em políticas públicas, é fundamental trabalhar isso nas escolas. As crianças precisam saber que a diversidade está aí, existem pessoas negras, com deficiência, nanismo, cadeira de rodas, síndrome de down, autistas. No momento que tu sabe, fica mais fácil de lidar e respeitar. Não é um ser esquisito, é conviver, entender – diz a jornalista.
Em sua vida profissional, que é marcada pelo trabalho em veículos de comunicação e na assessoria de grandes eventos – como Festival de Cinema de Gramado e Feira do Livro de Porto Alegre – ressalta que nunca se sentiu desconfortável. Inclusive, lembra com carinho de jantares após as programações e bate-papos animados com nomes como Zuenir Ventura e Lázaro Ramos:
– Sempre fui acolhida, mas acredito que é uma questão do meio artístico. É um espaço mais diverso, acolhe mais a diferença. Por outro lado, as produções artísticas não costumam tratar o nanismo com naturalidade. Os estereótipos são muito fortes ainda.
Agora, aos 70 anos, Lelei encontrou na maturidade sua arma para encarar o nanismo sem neuras. Se antes já se permitia fazer tudo o que tinha vontade, hoje segue ainda mais destemida:
– Vivo com mais entendimento, aceitação, tranquilidade, não sofrendo por tudo o que ouço. Porque, sim, vou seguir ouvindo. Eu sei que vou.
E Fomos Ser Gauche na Vida
- De Lelei Teixeira. Capa da fotógrafa Marianne Rotter e os ilustrações de Amaro Abreu.
- (Pubblicato Editora), p.166, R$ 45
Feira Cultural e Literária de Três Coroas/RS
- Sexta (11/12), às 16h: debate O Futuro Anticapacitista, com Lelei Teixeira, Lau Patrón e Marcos Bliacheris.
- Domingo (13/12), às 16h: bate-papo sobre o livro E Fomos Ser Gauche na Vida com Lelei Teixeira
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