É grande a responsabilidade da São Paulo Fashion Week (SPFW) que começa nesta quarta-feira (4). Após a crise do coronavírus causar o cancelamento da temporada, que costuma ocorrer em abril, ficou para esta edição o papel de celebrar os 25 anos da semana de moda. A pandemia ainda desafiou o evento, que segue até domingo (8), a adotar pela primeira vez o formato totalmente virtual. Entretanto, a expectativa subiu depois que a organização instituiu de maneira pioneira uma cota racial.
A partir desta temporada, 50% dos modelos de cada apresentação devem ser afrodescendentes, indígenas ou asiáticos, com parentesco até segundo grau. Apesar de ser uma decisão histórica, a organização escolheu implementá-la sem grandes anúncios. A regra foi incluída no "manual de convívio coletivo", como chama Paulo Borges, fundador e diretor criativo da SPFW. O documento é enviado antes de cada edição para as marcas participantes.
No entanto, a novidade rapidamente se tornou assunto. A modelo Camila Simões destaca que a semana de moda é o primeiro espaço que um modelo brasileiro precisa conquistar. É o evento na capital paulista que define se um iniciante deve ou não voltar para a cidade natal.
— É preciso lembrar que os 50% não é um benefício, é um direito conquistado — afirma Camila.
Ela, Natasha Soares e Thayná Santos, que participam do coletivo Pretos na Moda, foram decisivas para essa mudança se concretizar. As três modelos "invadiram" uma live de Paulo Borges, em 6 de junho, e cobraram um posicionamento da semana de moda mais importante da América Latina. Borges reconheceu que era hora de conversar e dar espaço para a "corajosa iniciativa", como ele define.
— O nosso papel é criar condições, mas o protagonismo é de todos os corpos criativos racializado —diz ele.
Ao falar sobre as funções nessa indústria, vale explicar que cada marca é responsável pela contratação das modelos. Aliás, o movimento Pretos na Moda também já confrontou os estilistas. Isso aconteceu quando as grifes se engajaram na hashtag Blackout Tuesday, em meio ao movimento Black Lives Matter, e postaram imagens pretas.
— Surgiu uma revolta. Se nós não falássemos, iriam usar a causa de forma oportunista — conta Camila.
Segundo ela, foi nessa ocasião que a modelo Thayná relatou ter sofrido racismo em trabalhos para duas grifes: Reinaldo Lourenço (que não participará desta temporada e, na época, declarou ao jornal O Globo: "Errei e não tenho problema em admitir isso") e Gloria Coelho - que tem apresentação marcada para domingo (8).
— Acho que todas as empresas eram racistas, nós temos que melhorar. Éramos racistas estruturais — afirmou Gloria, que disse ter achado as cotas "uma iniciativa muito positiva". — Neste desfile digital, tenho três mulheres: uma afrodescendente, uma branca e uma oriental.
A SPFW encara o racismo de maneira mais contundente em 2020, mas a semana de moda recomenda há mais de 10 anos que as marcas participantes contratem pelo menos 20% de modelos afrodescendentes, indígenas e asiáticos. Em 2009, o evento firmou um termo de ajustamento de conduta (TAC), que vigorou até 2011, com o Ministério Público do Estado de São Paulo, para que 10% dos profissionais nas passarelas fossem dessas raças.