Graziela Brum, 40 anos, é conhecida como a "maçaroca". Quem acompanha de perto a rotina da analista de marketing sabe bem o porquê do apelido: ao lado do marido, o médico Gustavo de Almeida, ela coordena uma casa com quatro filhos.
A entrevista na sala da residência da família, na zona sul de Porto Alegre, é interrompida por gritos de Antônio, um ano e meio, e Catarina, cinco anos, que querem a "mamãe". Já os gêmeos Guilherme e Gabriela, 16 anos, ajudam a manter tudo sob controle, mas volta e meia escapa um: "Mami, me ajuda aqui, por favor?".
– Nunca imaginei que ia ser mãe de quatro filhos. Meus planos mudaram, tudo mudou do dia para a noite. Sou a mãe e a mami, não dá tempo nem de ir tomar banho que já começam a me chamar (risos) – conta Graziela, que também é estudante de Psicologia.
Não é exagero quando a analista de marketing conta que esbarrou na maternidade de forma repentina. Há 11 anos, perdeu a tia que a criou, sua segunda mãe, vítima de uma embolia pulmonar. A morte rápida e inesperada deixou os gêmeos Guilherme e Gabriela sem a figura materna – os dois foram adotados pela tia de Graziela aos dois anos de idade. Recém-casada, a analista de marketing estava começando a construir sua família e não pensou duas vezes: iria virar mãe de duas crianças aos 29 anos.
– Minha tia dizia para nós que eu seria a responsável pelas crianças caso acontecesse alguma coisa, mas nunca imaginávamos que algum dia fosse de fato acontecer. Na verdade, acho que ninguém imagina. Madrinha é a que vai à escolinha, dá presente, brinca. Perdi uma mãe e ganhei dois filhos, tudo ao mesmo tempo – relembra Graziela. – Logo de cara, a ficha não caiu. Tive que internalizar que teria que dar conta. Não sabia nem o que comprar no supermercado e tinha dois pequenos em fase de alfabetização, foi um baque.
Graziela não havia dado à luz naquela época, mas a maternidade cruzou seu caminho. Assim como ela, há muitas mulheres que desenvolvem o amor de mãe sem gestar – e são essas histórias que você encontra nesta reportagem especial de Dia das Mães.
Uma nova família
A relação de Graziela com Gabriela e Guilherme sempre foi de dinda e afilhados. Ela não era uma desconhecida para as crianças, mas se tornar a referência dos dois trouxe novos desafios para a família. As mudanças incluíram uma troca de cidade para viver com a madrinha, uma nova escola, outros amigos, uma casa desconhecida. O casal morava em uma apartamento de um quarto e precisou alugar às pressas um espaço maior.
– Sempre disse que eles não era vítimas, tinham muita potência e capacidade. Claro que eu estava enlutada, não queria transparecer. Naquela época, as pessoas diziam que eu era corajosa, mas não me considero. Não existia outra forma, era meu comprometimento. Era amor, sempre foi. Madrinha é isso: na ausência da mãe, tomamos conta. Eles ganharam mais uma família, não só uma mãe – conta Graziela.
Aos poucos, os quatro foram ajustando o relacionamento. Ocupar o lugar da mãe das crianças nunca foi o propósito da analista de marketing e, naturalmente, uma divisão ficou estabelecida: Graziela seria a "mami", não a mamãe. A psicóloga e pesquisadora Andrea Kotzian Pereira, coordenadora do setor de adoção do Centro de Estudos, Atendimento e Pesquisa da Infância e da Adolescência (Ceapia), explica que o tempo de adaptação à nova vida é determinante:
– É uma construção. Não adianta colocar uma criança na frente da mulher e dizer: agora tu é mãe e tu é filha. Tudo precisa de tempo, de conhecimento, de aproximação. A criança se sente segura com essa construção afetiva, não tem como dizer que vira uma chave para ambos. Em casos de falecimento, não dá para esperar ocupar um lugar, a mãe esteve ali, teve seu papel. Essa pessoa ocupa um novo espaço.
Após a chegada das crianças, a rotina da família se transformou. Graziela e Gustavo pouco ficavam em casa, trabalhavam muito e faziam viagens de última hora. Os dois precisaram incorporar as necessidades das crianças na rotina: momento da tarefa escolar, hora do almoço e por aí vai.
– Não sabíamos muito como fazer as coisas no início, mas tentávamos transformar tudo em uma brincadeira. Íamos fazer trilha, acampar, e levávamos eles junto. Para superar o luto, a presença deles foi muito importante. Ela era uma referência para mim, de mulher, de profissional. Minha tia era o meu porto seguro, não tê-la ela é muito difícil até hoje. Saber que eles precisam de mim me fez uma fortaleza – explica.
Claro que, junto da mudança de vida, vieram inseguranças e incertezas. A adaptação daria certo? A maternidade nesses termos seria missão impossível? Para a analista de marketing, o apoio familiar foi imprescindível para o bom relacionamento construído desde o início da nova fase:
– Meu marido manteve meu chão. Ele disse que precisávamos de apoio, de terapia, e realmente fez diferença para desenvolvermos o relacionamento com as crianças. Ele é um ponto-chave, eu precisava de um pai ali, presente, para eles.
O suporte para iniciar uma nova vida nesses casos precisa ser encarado como um pilar fundamental, concorda o psiquiatra José Ovídio Copstein Waldemar, professor do Instituto da Família de Porto Alegre (Infapa):
– É um estresse se tornar mãe do dia para a noite, por isso a necessidade de ajuda é tão importante. O que determina se a experiência vai ser boa ou ruim não é só o fato de ser repentina. Primeiro, é preciso entender se a pessoa está fazendo aquilo porque quer e se tem ajuda. Considero como dois fatores essenciais.
Gabriela e Guilherme sempre souberam que foram adotados. Na infância, perderam as contas de quantas vezes foram questionados sobre suas origens. Os gêmeos também têm consciência de que são um caso atípico, já que tiveram uma mãe biológica, a mãe adotiva e, agora, têm a mami. O papo aberto fez com o que assunto não virasse tabu, conta a adolescente:
– A maior curiosidade das pessoas é se queremos conhecer a nossa família biológica. Sempre digo: já conheço a minha mãe de verdade. Acham que nosso sonho é voltar para a família original, mas não é. Isso não é o mais importante. Claro que há curiosidade, só que não é o que nos move. Acho que lidamos muito com a ignorância das pessoas sobre a adoção.
Hoje, a família está maior: Antônio e Catarina, filhos biológicos de Graziela e Gustavo, agitam a casa. Os gêmeos tornaram-se padrinhos do caçula.
– Vejo a maternidade biológica e adotiva da mesma maneira. Posso afirmar que o amor é igual. A diferença é que perdi uma parte da história da Gabi e do Gui, mas só isso. Não muda o amor.
Tímido durante a entrevista, Guilherme toma coragem para se manifestar. E as palavras fazem os olhos da mami ficarem marejados:
– Ela é como se fosse uma cola, deixa tudo ligado. Nossa mami é o coração da família.
Parceria materna
Aclaene de Mello, 54 anos, é outra mulher de perfil agregador, assim como Graziela. Ser mãe não estava nos planos da arquiteta que, ainda na adolescência, bateu o martelo sobre seu futuro: iria se dedicar à carreira para se tornar uma profissional bem-sucedida. De fato, não engravidou, mas a maternidade foi ao seu encontro por meio de outro papel, o de dinda.
– Nunca imaginei que seria a mãe do coração. Hoje, me dou conta que não consegui fugir do perfil da minha família, que é agregador. É uma característica nossa – conta Aclaene, que enche uma mão ao lembrar do número de afilhados.
Entre seus pupilos, está João Guilherme, cinco anos, o xodó da "didi", como ele mesmo a chama. Amiga da família de Franciele, mãe biológica do menino, Aclaene se tornou dinda por acaso. Não era tão amiga assim da mãe do garoto, mas acabou ganhando o título graças ao relacionamento com o irmão de Franciele, que é o dindo e também virou a figura paterna do guri. E o amor entre Aclaene e João se fortaleceu a jato, relembra a arquiteta:
– Sempre gostei de ser dinda, sou a dinda presente, real oficial (risos). Com o João foi diferente, me considero uma referência materna mesmo. Ele foi chegando e me apaixonei, tivemos uma conexão. Não sei explicar, despertou algo em nós. Desde então, não nos desgrudamos.
João costuma passar temporadas na casa da dinda. O guri gosta tanto que não abre mão do intenso contato semanal, o que fez Aclaene adaptar sua rotina: como trabalha em home office, deixa o menino ficar na cama até mais tarde e transformou o balcão da cozinha em espaço para desenho, uma das atividades favoritas do afilhado. A arquiteta também ajuda o menino no dever de casa e é figura conhecida na escola, pois acompanha de perto o comportamento dele em sala de aula. No apartamento da dinda, no centro de Porto Alegre, chamam atenção os DVDs infantis espalhados pelo chão, uma das paixões de João.
– Já avisei que ele tem que escolher alguns para doar. Aqui não tem moleza, dou bronca, a gente tem regras. Sou educadora dele também, não é só festa. Se brincar, vai guardar os brinquedos. Temos nossas combinações, ele entende que tem limites – explica a "didi".
O relacionamento dos dois desperta questionamentos. Na rua, é comum perguntarem se ela é a mãe do menino, dada a sintonia entre os dois. Quando isso acontece, Aclaene faz questão de frisar: ama o afilhado, mas não quer ocupar um espaço que não é seu. É a dinda, a "mãedrinha". Mãe mesmo, só uma:
– Digo que sou a didi, a mãe do coração. Não posso e nem quero entrar em competição, somos uma rede familiar.
Franciele, a mãe de João, sabe da importância de Aclaene na vida do filho e rasga elogios à parceira de maternidade. A colaboração é em todas as áreas, inclusive quando o assunto é a disciplina, ressalta:
– Digo que gerei esse amor na minha barriga por nove meses, e a Aclaene fez isso aqui fora. É a mãe do coração, ele ama ela demais. Ela é uma pessoa fundamental na nossa vida. Não temos uma família muito tradicional, eu sei, mas amamos muito o João. Conversamos sobre a educação dele, combinamos algumas coisas, tomamos decisões em conjunto. Se ele tem os dias de rebeldia, ninguém amolece.
E a preocupação delas em não incentivar qualquer tipo de disputa de espaço é o caminho para construir uma relação saudável. Para o psiquiatra, a participação ativa de tias e madrinhas é importante, mas todos precisam estar cientes de que é uma função materna adicional, sobretudo a criança.
– Funciona como a figura de uma segunda mãe mesmo, e quanto mais amor e ajuda para a criança, melhor. Só que ninguém tira o espaço da mãe biológica, é complementação. Por isso, é importante uma madrinha com inteligência emocional, que se entenda e aja como auxiliar – avalia o especialista Waldemar.
Pelo grupo de WhatsApp, a família divide suas impressões sobre João, acerta detalhes da rotina e, claro, compartilha fotos fofas do menino de sorriso largo. As datas comemorativas, seja Páscoa ou Natal, também funcionam em forma de maratona: depois de ver o Papai Noel na casa da madrinha, ele corre para os braços de seu dindo, o pai do coração, e da mãe.
– Digo para o João que vou estar sempre aqui para ele. Se ele quiser, serei sempre o porto seguro dele. Ele enxerga a gente como uma grande família, é uma rede de amor mesmo – diz Aclaene.
Escolha pela adoção
Se a maternidade atravessa a vida de algumas mulheres de surpresa, no caso de Nanra Branco, 38 anos, a espera pelo filho adotivo foi uma escolha. Logo que começou a se relacionar com o marido, o administrador André Luis Palacio, 52 anos, deixou claro que a maternidade biológica não era um sonho. Quando passaram a conversar sobre aumentar a família, a possibilidade da adoção veio com força.
– Queria pensar em outras formas de ser mãe. Meu marido concordou com a ideia, mas também queria um filho biológico. Combinamos de tentar primeiro um biológico e, depois, entrar na adoção – conta Nanra.
O casal não demorou a engravidar, mas passou por dois abortos. O "não" confirmou o plano inicial: eles seriam pais sem gestar.
– Olhando para o Gerson, não dá para dizer que não era para ser o nosso filho. Só foi por um caminho diferente – relembra a chef de cozinha.
Ao entrar na fila de adoção, o casal se mostrou aberto a receber uma criança de até seis anos. A idealização do filho perfeito é um desafio comum dos pais, ressalta a psicóloga Andrea, do Ceapia. Essa desconstrução precisa começar durante a espera pela criança, explica a especialista:
– A ideia do filho ideal é comum, e geralmente é distante do filho real. A maioria das crianças adotadas já passou por negligência, maus-tratos. Os pais precisam estar conscientes. Quem adota, gesta afetivamente. Precisa de tempo para pensar em como lidar com os desafios.
Aos seis anos, Gerson passou a integrar a família. O pai ficou tão animado com a chegada do garoto que garantiu três ingressos para a inauguração do Beira-Rio. Porém, no primeiro encontro com Gerson, ele estava com um uniforme do Grêmio.
– É uma história engraçada, o André nem pensou, só comprou os ingressos. O Gerson decidiu se tornar colorado quando pediu uma camisa do Inter. Ele olhou para nós e disse: "Se a família é colorada, vou ter que ser". Hoje, é o maior colorado da casa – destaca Nanra.
Como já era esperado, a rotina da família mudou com a chegada do garoto. Mas o impacto foi maior que o imaginado: Nanra percebeu que os seis meses de licença não seriam suficientes para estabelecer uma nova dinâmica. Ali, decidiu mudar de área. Jornalista, ela trabalhava como cargo em comissão. Largou tudo para fazer home office e se dedicar à gastronomia.
– Comecei a dar um suporte na parte da educação, ele não era alfabetizado. Era chamada na escola todos os dias da semana. A maternidade me fez analisar as minhas prioridades – conta.
Além desses desafios, Nanra deparou com um problema que, agora, a atingia diretamente: o racismo. A cor da pele do filho fez com que a família passasse por situações inesperadas, como quando uma brigadiana abordou o menino na Feira do Livro.
– A gente sabe que o racismo existe, mas não sente. Agora, se for com o Gerson, é comigo. No meio da Feira, ele teve um ataque de birra. Abracei ele e comecei a pedir para parar. Daí chegou uma brigadiana e se dirigiu ao Gerson. Ele parou, arregalou os olhos, ela foi muito agressiva, não se dirigiu a mim. Disse que era meu filho e estava tendo uma acesso de birra. A resposta foi surreal: "Tu tem que ver que eu poderia pensar qualquer coisa. De repente eu achei que ele poderia estar te roubando". Fiquei chocada.
Foi nos primeiros encontros que o menino começou a chamar Nanra e André de mãe e pai. Só que a relação construída desde os primeiros papos não tem fórmula mágica para dar certo. É um passo de cada vez, avanços e retrocessos, um recomeçar diário, frisa Nanra:
– Ele já era meu filho desde o primeiro momento, acho que é parecido com a gestação tradicional. Tu sabe que é teu filho, mas precisa se conectar. Não existe a possibilidade de apagar a vida que o Gerson teve, e nem queremos isso. Estamos construindo nossa história juntos dia após dia.