Se, nas telas, Regina Casé está exibindo um novo ângulo seu com a interpretação da primeira vilã da carreira — a controversa Zoé, de Todas as Flores, trama lançada originalmente no Globoplay e exibida na TV aberta desde 4 de setembro, na faixa das 23h –, nos bastidores, a carioca ainda é a mesma mulher de espírito comunitário à qual os espectadores estão acostumados desde que foi apresentadora de programas como Brasil Legal (1995-1997), Central da Periferia (2006) e Esquenta! (2011-2017).
Em entrevista por áudio a Donna, a artista declara que "não consegue estar bem se todo mundo ao seu redor estiver mal" e dá um exemplo de como essa crença está impressa na sua personalidade. Regina entra na conversa alguns minutos atrasada e explica o motivo: estava na zona sul do Rio de Janeiro conversando com lideranças da comunidade Cruzada São Sebastião e gravando materiais no intuito de destravar a revitalização do Jardim de Alah, parque que divide os bairros Ipanema e Leblon.
— Muita gente me fala: "Regina, se você tem tanta preocupação social, por que nunca teve uma ONG?" e eu respondo que o meu trabalho e a minha vida são ONG. Tudo que quero fazer eu faço, nas escolas, no meu prédio, para as pessoas que moram aqui ao lado, no meu dia a dia e o tempo todo, não é uma coisa separada, estanque — afirma.
Do apartamento no bairro Leblon, onde mora há mais de 20 anos, Regina relembra alguns de seus principais trabalhos como apresentadora e atriz. No cinema, é multipremiada pela atuação em filmes como Eu, Tu, Eles (2001), Que Horas Ela Volta? (2015) e Três Verões (2020), mas a carreira começou no teatro, na década de 1970, quando fundou o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone. Depois, sentindo vontade de levar seu trabalho a um público mais amplo e diverso, migrou para a TV — Tina Pepper, de Cambalacho (1986), foi sua primeira personagem de sucesso na telinha e marcou o início de uma relação duradoura com o gênero comédia. Na década de 1990, começou a se envolver com outros programas, geralmente focados em trazer informação sobre a vida e a cultura na periferia.
Desafios
Aos 69 anos, Regina comemora a serenidade que adquiriu com a maturidade e sonha poder ter a mesma agilidade que tinha na juventude para tocar seus projetos. As limitações naturais da passagem do tempo são contornadas no dia a dia e não a impedem de estar sempre com algum trabalho engatilhado, tudo enquanto cuida da família que cultivou com o marido, o diretor e produtor audiovisual Estevão Ciavatta. A artista vive um momento familiar especial: é mãe de Roque, um menino de 10 anos adotado em 2013, e avó de Brás, seis, da filha Benedita Casé Zerbini, 34.
— É difícil ter um neto e um filho que são crianças e separar as coisas. Como avó, eu poderia não ser tão pedagógica, não ficar educando e dando limites o tempo todo, mas como eles estão sempre juntos, ou sou muito dura com o Brás, que eu não deveria ser, ou dou muito mole para o Roque, que eu não deveria dar. É isso que está mais difícil agora — relata, rindo.
Os desafios de ser mãe, avó, atriz e uma mulher interessada em colaborar para um país mais igualitário — tudo isso enquanto se prepara para gravar três filmes — são alguns dos temas que Regina compartilha a seguir com as leitoras. E garante que seu pique está a mil: é mais do que suficiente para "sambar a noite todinha" e, de quebra, incomodar os etaristas:
— Toda vez que eu posto foto, alguém fala: "Nossa, você tem uma energia!", "Eu não acredito que, depois disso tudo, você ainda foi pro samba!" Ouço isso o tempo inteiro, dia e noite. O etarismo é uma causa que a gente tem de encarar, ele é uma barra. As pessoas não aguentam que uma pessoa de quase 70 anos faça tudo que eu faço — avalia.
Entrevista com Regina Casé
Qual é a sensação de interpretar a primeira vilã?
Sempre fiz personagens muito empáticos, o que é uma delícia porque você fica sendo adorada e todo mundo trata você bem. Mas eu sempre quis fazer uma vilã, só que o papel não vinha nunca, acho até que havia certa resistência, um "você não é para esse tipo de papel". Mas eu adorei fazer a Zoé e acho que consegui trazer alguns traços mais complexos, dúbios, toda aquela coisa de ser má com os filhos. Não é uma vilã retilínea nem óbvia, é engraçada, tem fragilidades.
Acha que a demora tem a ver com o espaço que você cultivou, de personagens bondosas?
Acho que sim, até porque eu me orgulhava muito de uma coerência na dramaturgia com o que eu fazia em outros programas — e acho que as pessoas buscavam muito isso em mim. É só pensar na Val do Que Horas Ela Volta? (2015), na Dona Lurdes de Amor de Mãe (2019), todas eram empregadas domésticas, babás, cortadoras de cana, trabalhadoras, mães solo, quase sempre nordestinas. Isso tudo foi construindo um lugar por mim do qual me honro muito por ter podido representar e homenagear essas mulheres. Mas tudo tem dois lados e acaba que as pessoas só te veem ali nesse lugar.
Muita gente conhece você pelo humor. Tem um gênero favorito?
Não tenho. Na televisão, eu comecei fazendo Chico Anysio, Renato Aragão, TV Pirata, então, assim como agora estou presa com os papéis de "boazinha", naquela época estava presa no humor, não podia fazer outra coisa senão comédia. Mas graças a Deus as coisas vão mudando. Ultimamente tenho pensado inclusive que negligenciei muito o meu trabalho de atriz, fiquei surpresa em ver como as novas gerações não sabiam nem que eu era atriz, então foi importante ter voltado a atuar.
Caiu a ficha de que se eu queria realmente falar com todos e mostrar o Brasil, meu caminho era a televisão
REGINA CASÉ
Atriz e apresentadora
Ao longo de 30 anos, você fez vários programas sobre a realidade da periferia. O que motivou esse tipo de conteúdo?
É com certeza um propósito e foi acontecendo naturalmente. Durante muitos anos, fiz só teatro, tinha horror de televisão. Quando eu tinha 20 anos, dei uma entrevista para a Veja e me lembro que a manchete era assim, bem grande, "Jamais trabalharei na Globo" (risos). Eu tinha a ilusão de que sendo contra aquilo tudo e fazendo teatro, eu estava falando com todo mundo. Mas conforme fui viajando pelo Brasil, fui olhando para a plateia e percebendo que não tinha pessoas negras no público. Com isso, começou a cair a ficha de que eu não estava falando com todo mundo e que, se eu queria realmente falar com todos e mostrar o Brasil, meu caminho era a televisão.
A experiência com os programas trouxe alguma visão diferente de mundo, de Brasil?
Com certeza. Me trouxe a visão de que a gente tem de ajudar essas pessoas. E é uma visão muito louca, porque quando você faz isso, na verdade você está se ajudando e ajudando a sociedade como um todo. E para mim, isso não é uma coisa ligada a um programa, é a minha vida, são as coisas que eu acredito, que eu quero para o meu filho, para o meu neto. Eu acredito que é impossível ser feliz sozinho, eu não posso viver bem se todo mundo na minha volta está mal.
Houve algum estalo que fez você despertar para isso?
Tive uma educação muito boa na minha família, antirracista, e convivi com muitas pessoas de diferentes classes sociais e raças. Acho que isso tudo me deu uma base para sentir um estranhamento quando vou a um lugar com mais de cem pessoas e todas elas são brancas, sendo que a população do Brasil é 56% negra ou parda. E se me causa um estranhamento, eu vou querer entender por que isso está acontecendo e querer mudar de alguma forma.
A sua filha Benedita tem perda auditiva desde a infância. Como vocês duas lidaram com isso?
Segui muito a minha intuição e acho que acertei. Até brinco com ela: "Nossa, eu aprendi muito com você para lidar com o Roque", apesar de, com ele, a questão ser o fato de ele ser preto. Você percebe se alguém está olhando torto, se alguém está excluindo o seu filho numa situação, seja porque ela é surda ou porque ele é preto. Então nós duas atravessamos juntas um caminho duro, mas muito vitorioso. Benedita tem uma vida plena, um casamento muito feliz, trabalha plenamente. Tem também uma luta anticapacitista da qual me orgulho muito, agora com um videocast no YouTube chamado PcDPod. Eu aprendo muito com ela porque, às vezes, você está lutando contra um preconceito e está incidindo em outro, por desconhecimento ou ignorância.
A vinda do Roque te transformou?
Eu tinha vontade de adotar há muito tempo. Quando me casei com o Estevão, eu já tinha 45 anos e até cheguei a engravidar quatro vezes, mas perdi todos. Eu já tinha Benedita de um casamento anterior, mas a gente queria muito ter um filho juntos e entendemos que esse seria o caminho. E foi um caminho maravilhoso, hoje Estevão é muito realizado como pai e Roque é um filho incrível, me dá muitas alegrias.
Em 2024, você fará 70 anos. Quem é a Regina Casé neste momento?
É incrível que você não possa ter as duas coisas, mas eu falo sempre: "Nossa, se eu tivesse a serenidade que eu tenho agora e não tivesse aquela ansiedade quando era novinha", eu me sinto imensamente mais feliz hoje em dia do que antes. Mas surgem mil limitações estruturais, você não consegue mais fazer as coisas do jeito e na velocidade que você fazia, fica tudo mais difícil. Ao mesmo tempo, acho que a qualidade de vida e o bem-estar emocional melhoram muito. Então é isso, se eu pudesse juntar as coisas, correr, pular o muro, fazer de tudo e ainda ter a serenidade que eu tenho hoje, seria o ideal. Mas eu ainda sambo a noite todinha (risos).
Você e Estevão estão casados desde 1996. O que há de melhor nesse encontro?
A gente deseja as mesmas coisas para a gente, para a cidade, para o país e para os filhos. Durante muito tempo, eu trabalhei só na favela ou só na floresta, fazendo Um Pé de Quê? (2001-2011) e Central da Periferia (2006), com ele na direção dos programas. E aí eu falava: "Estevão, como é que eu fui conseguir alguém que gosta igualmente de trabalhar o dia inteiro na floresta e na favela?". Mas a gente também lutou muito contra o preconceito, eu sou 14 anos mais velha do que ele. A gente tinha todas as chances de dar errado, uma diferença grande de momento profissional, de grana, de idade, de eu ter filho e ele não. Tudo isso poderia ter jogado contra, mas acabou nos aproximando e unindo.
O que está almejando nesse momento?
Quero ter tempo para estar com quem eu amo, com Roque, Brás, Estevão, Bê, com o João (genro). Eu tenho viajado muito com eles, esse momento de vida traz muito isso. Se não tivesse a escola dos meninos, a minha vontade seria de emendar uma viagem na outra. Acabei de chegar do Amazonas, onde ficamos uma semana em um barco, navegando o Rio Tapajós e o Rio Arapiuns. Nas férias de julho, fizemos um safári na África do Sul que foi maravilhoso, ainda mais na companhia das crianças. Atualmente essa é a coisa que mais me deixa feliz.