Quando Ingrid Silva sobe ao palco na ponta dos pés, apresenta muito mais do que um espetáculo de dança. A brasileira faz história. Bailarina principal do Dance Theatre of Harlem, em Nova York, a artista de 32 anos passou mais de uma década pintando as sapatilhas de balé, feitas tradicionalmente no tom rosa, para que ficassem da cor de sua pele. Hoje, essas mesmas sapatilhas estão expostas no Museu Nacional de Arte Africana Smithsonian, nos Estados Unidos.
— Acredita que ainda não fui ver? — confessa. — O par entrou em exposição em 2019, quando eu estava grávida da Laura. Em 2020, veio a pandemia. Então ainda não tivemos esse momento especial, mas sinto muita gratidão. Não vejo a hora de ir ao museu com a minha filha e poder mostrar esse legado para ela — diz.
A partir dessa iniciativa, agora há marcas que fabricam as sapatilhas para balé em diferentes tons.
Da sala de casa, Ingrid conversou por vídeo com a reportagem de Donna, junto de Laura, que completa um ano de vida em novembro. Entre abraços, carinhos, olhares curiosos da bebê para a tela e gestos suaves para amamentar enquanto responde às perguntas, a bailarina conta o que deseja ensinar à filha: a ter empatia e opinião própria. Que possa entender o quão importante é o espaço que ocupa, a voz que exerce e quem vai ser para o mundo. Questões que acompanham a sua própria jornada, eternizada na autobiografia A Sapatilha que Mudou Meu Mundo (Globo Livros), lançada em agosto, que revela suas conquistas muito além da dança.
Criada no bairro Benfica, na zona norte do Rio de Janeiro, Ingrid conheceu o balé aos oito anos, por meio do projeto social Dançando para Não Dançar, que tinha Ana Botafogo como madrinha. A bailarina foi sua referência na arte desde cedo, mas Ingrid não encontrava outras pessoas negras nas companhias que frequentou dali para frente em que pudesse se espelhar. Foi ao se mudar para Nova York que descobriu um lugar de identificação e passou a sentir-se confortável na própria pele.
Mais do que uma cidade
No Brasil, Ingrid chegou a estudar na escola de Deborah Colker, no Rio, e a estagiar no Grupo Corpo, em Minas Gerais. Até que, em 2007, a brasileira Bethânia Gomes, primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem na época, veio ao país e pediu a Ingrid, após vê-la dançar, que fizesse um vídeo para uma seleção. A carioca foi aprovada e participou de um curso de verão na companhia de dança. Depois, voltou ao Brasil apenas para fazer as malas e, em janeiro de 2008, se mudou de vez para a Big Apple.
— Foi um pontapé na minha vida. Nova York é a bolha da diversidade, a gente consegue fazer tudo, tem pessoas de todos os cantos, o que é importantíssimo para alguém que está formando sua identidade. Vi diversidade dentro da sala de aula, me senti acolhida e vi que as pessoas eram o que elas quisessem. Infelizmente, no Brasil, eu não tinha essa visão, não me reconhecia.
A companhia fundada em 1969 por Arthur Mitchell, o primeiro bailarino negro do New York City Ballet, é reconhecida mundialmente por defender a diversidade e priorizar bailarinos negros em seu casting. Foi ali que Ingrid aprendeu a técnica de pintar as sapatilhas com base de rosto para que não contrastassem com sua cor de pele.
Mais do que profissão, o balé se transformou em ferramenta de aceitação e autoestima. A carioca parou de alisar os cabelos e aprendeu a fazer um coque de um jeito natural para mantê-los no estilo black quando soltos. Antes de todos esses aprendizados, contudo, a vida em Nova York foi marcada por muitos desafios, como a saudade da família e a adaptação ao idioma e ao clima. Ingrid revela que chegou a pensar em desistir, mas encontrou o empurrãozinho que precisava no apoio incondicional da mãe.
— Era um mundo totalmente diferente, onde eu não tinha experiência nenhuma, não conhecia ninguém. Lembro de pegar moeda, ligar do orelhão e falar: “Mãe, não quero mais estar aqui”. Ela disse: “Minha filha, você não vai desistir, não vai voltar para cá”. Se ela não tivesse dado esse apoio, hoje não estaria onde eu estou, com certeza.
Voz ativa dentro e fora do balé
Cofundadora de iniciativas como o EmpowerHer New York e o Blacks in Ballet, Ingrid é hoje uma referência para meninas negras, não apenas no balé como na busca por igualdade e diversidade. Com frequência, a artista usa suas redes sociais para levantar questões sobre racismo, direitos das mulheres e representatividade.
— É importante que as pessoas vejam alguém que se pareça com elas. Eu não tive essa oportunidade, mas sei o quanto represento e é de uma responsabilidade muito grande. Às vezes tenho medo de desapontar, mas também sou um ser humano, então estou todos os dias construindo minha própria jornada. Algumas vezes vou errar, outras vou acertar, mas quero sempre fazer o meu melhor — destaca Ingrid.
Que tipo de corpos vamos querer ver na dança? Será que vamos ver pessoas trans dançando na ponta? Homens dançando na ponta? Por que não?
INGRID SILVA
bailarina
Um dos seus principais objetivos é mostrar que o mundo pode ser um lugar cheio de possibilidades a crianças e jovens negros, e isso passa por uma busca constante por mudanças no universo do balé, ainda muito elitizado. Para a profissional, a dança clássica precisa expandir horizontes e passar a adotar a diversidade de fato para se manter no mundo contemporâneo.
— Como vai estar daqui a cinco anos? O que a gente vai querer assistir como público? Que tipo de corpos a gente vai querer ver na dança? Será que vamos ver pessoas trans dançando na ponta? Homens dançando na ponta? Por que não? É isso o que eu espero.
Ingrid fala da importância de projetos sociais, mas reforça que ainda há muito a ser feito para garantir que mais pessoas tenham acesso à arte, tanto para assistir quanto para se especializar.
— Muita gente vê o balé como um hobby, dizem que não é uma profissão, mas a arte também é um trabalho, tão honorável quanto qualquer outro, e nos salvou durante essa pandemia.
No livro, a bailarina aborda a presença do corpo negro na dança clássica e revela em sua narrativa as dificuldades que sentiu na pele:
— Foi muito difícil para as pessoas me verem como uma bailarina clássica sendo uma mulher negra. A gente tem ainda a questão do racismo estrutural no Brasil, que é muito pesado, e quando é visto na dança é muito pior. O corpo negro é diverso, a mulher brasileira tem o corpo avantajado, nós temos curvas, totalmente diferente do corpo europeu, que foi onde o balé surgiu, mas nada disso impede a dança.
A carioca vem plantando sementes em vários lugares para incentivar essa mudança de cenário. Sua atuação se fortalece e é cada vez mais reconhecida. Na última vez em que esteve no Brasil, recentemente, a bailarina conta ter se surpreendido com o carinho das pessoas nas ruas.
— Recebo depoimentos de como o livro vem mudando vidas. Isso é muito especial. Não é só a dança em si. Quase achei que não ia terminar, mas consegui. É uma conquista muito além da dança, é algo que vai ficar para sempre.
Maternidade e carreira
Com Laura junto ao peito, Ingrid conta que a rotina como mãe tem lhe ensinado uma outra grande virtude: a paciência.
— Menina, está uma loucura. Ser mãe não é fácil, não é tão romântico quanto as pessoas pensam ou falam. É totalmente diferente do que eu imaginava, estou me redescobrindo, adquirindo muita paciência. Agora ela começou a andar, então é uma aventura nova todos os dias.
A filha a acompanha no trabalho diariamente, pelo menos em meio turno, quando recebe os cuidados e a atenção dos demais integrantes da companhia de dança. Ingrid é a primeira a ter filhos no grupo e diz que tem sido desafiador e, ao mesmo tempo, positivo.
— Estou fazendo com que meu ambiente de trabalho me dê essa oportunidade. Posso dar conta do meu ensaio, posso pedir para os meus amigos que não estão dançando naquele momento segurá-la. Em casa, falo com ela em português e no ensaio só inglês. Ela vai ser bilíngue ali — diz, enumerando outra vantagem do convívio de Laura com sua profissão.
— Entendo que muitas mulheres têm que optar entre trabalho ou ter filhos, ainda acho que essa é uma escolha ingrata, que o homem não tem que fazer. Por que a gente tem? Também temos que normalizar o fato da amamentação em público, no seu ambiente de trabalho, de mães poderem trazer seus filhos, e nisso estou me redescobrindo — destaca.
Os sonhos de uma bailarina
De todos os palcos pelos quais já passou, Ingrid diz que gostaria de voltar ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde chegou a estudar, mas para um espetáculo profissional. Filha de uma empregada doméstica e de um funcionário aposentado da Força Aérea Brasileira, Ingrid conta que ninguém da família havia entrado em um teatro antes de ela se envolver com a dança. Tornar essa realidade possível para tantas outras pessoas que ainda não tiveram essa oportunidade é um dos seus grandes objetivos de vida.
O corpo negro é diverso, a brasileira tem o corpo avantajado, nós temos curvas, totalmente diferente do europeu, mas nada disso impede a dança
INGRID SILVA
bailarina
— Queria muito fazer uma apresentação no Municipal com entrada a R$ 1. Seria incrível lotar um teatro com pessoas que nunca entraram lá — conta.
Outro plano é percorrer o Brasil para dar aulas em locais onde o balé não chega, saindo do eixo Rio-São Paulo:
— Tem muito mais para explorar. A arte tem que ser para todos.
Assim como suas lutas, seus sonhos também extrapolam os palcos. Ingrid revela que seu maior desejo é ser dona da própria marca de acessórios de balé, a preços acessíveis. Um presente para a menina que se jogou na primeira aula de dança clássica de sua vida sem a noção de que se transformaria num símbolo para tantas outras garotas e mulheres.
Livro:
A Sapatilha que Mudou Meu Mundo
- Globo Livros, 2021
- 176 páginas
- R$ 44,90