PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) - Antes uma atração mais ligada à nobreza, o balé ainda hoje é considerado por muitos como um produto cultural elitizado, mesmo séculos depois do seu surgimento.
Isso é reforçado pelo fato de bailarinos serem majoritariamente brancos, inclusive no Brasil, um país onde 55% da população se declara preta ou parda, segundo dados de 2016 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
"O balé é uma arte muito aristocrática, começou assim e se manteve dessa forma. Sempre existiu a ideia de que as negras não tinham o corpo ideal de uma bailarina, que não tinham a mesma aptidão para os movimentos de precisão e leveza. São visões descabidas, mas que continuam se perpetuando. O número de negros no balé ainda é pequeno", diz Rejane Duarte, 45.
A bailarina brasileira vive nos Estados Unidos há 20 anos. Lá integrou o Dance Theatre of Harlem, em Nova York, a primeira companhia negra de balé clássico do mundo. Em 2009, dez anos depois de Duarte, outra brasileira ingressou na companhia, a carioca Ingrid Silva. O grupo surgiu em 1969 por iniciativa de Arthur Mitchell, o primeiro bailarino negro do New York City Ballet, promovido mais tarde a dançarino principal pelo russo George Balanchine.
"Trabalhei duro, dancei todo o repertório e consegui ser bailarino principal. Lá, eu sabia que era o único, mas sentia que representava alguma coisa maior", disse à Folha de S.Paulo em uma entrevista de 1995 -ele morreu em 2018. Mitchell decidiu fundar o grupo depois da morte de Martin Luther King Jr., ativista contra o racismo. No Brasil, Mitchell ajudou a criar na década de 1960, o Ballet Nacional.
Rejane Duarte, que trabalhou com Mitchel, volta à cidade natal para selecionar bailarinos para bolsas de estudo no Dance Theatre of Harlem durante a segunda edição do FIDPOA (Festival Internacional de Dança de Porto Alegre), que segue até 15 de junho. Como jurada, ela espera encontrar talentos negros entre os 1.500 bailarinos de todo o Brasil inscritos no evento que serve de vitrine para disputa de bolsas em países como França, Alemanha e China.
O festival é promovido pelo Ballet Vera Bublitz, que completou 40 anos, onde Duarte se formou bailarina e teve o primeiro trabalho como professora de balé até se mudar para Nova York. Na época de aluna, era a única menina negra. Por isso acredita que se tivesse ficado no Brasil, não teria tido as mesmas oportunidades. Atualmente, ela está fora dos palcos.
"O preconceito racial é velado. É uma mentalidade antiga e preconceituosa, que as pessoas não gostam de admitir. A verdade tem que ser dita. Os bailarinos negros conseguem mais trabalho fora do país do que no Brasil. Tem algo errado aqui", afirma Duarte.
Quando chegou ao Harlem, bairro negro nova-iorquino, ela diz ter se sentido à vontade. Ali não era a única negra a dançar balé. Ela trocou a meia-calça e as sapatilhas cor-de-rosa por acessórios pintados manualmente de marrom. Os itens são tradicionalmente claros para se assemelhar com a pele branca da maioria das bailarinas.
"Até hoje tenho que pintar porque a marca que uso não fabrica de outra cor. Alegam que a demanda é pequena, mas isso só reflete a realidade de negros como minoria no balé", diz.
Com a companhia, apresentou diversos repertórios pelo mundo. Entre eles "The Prodigal Son", coreografado por Balanchine, e uma versão afro-americana do clássico "Giselle".
"É muito triste quando falo que sou bailarina e as pessoas dizem 'que legal, você dança samba!'. Só porque sou negra. Isso não vai mudar da noite para o dia. Temos que bater na mesma tecla, mesmo que alguém ache seja cansativo. São mais de 400 anos de balé branco", diz.