Bárbara Paz atendeu ao telefone para conversar com Donna ainda no estado de euforia que tomou conta de sua vida no dia 18 de novembro. A razão: a Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais escolheu o documentário Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, estreia da gaúcha na direção de um longa, para disputar uma vaga na categoria Melhor Filme Internacional do Oscar 2021. Já na primeira resposta, sobre o desafio de levar para as telas os últimos sete anos de vida do ex-marido Hector Babenco, cineasta morto em 2016, ela não escondeu a empolgação:
– Você está gravando? Porque eu estou falando rápido (risos).
O reconhecimento como diretora – seu filme é o primeiro no gênero documentário indicado pelo país – coincide com uma Bárbara mais madura, de 46 anos recém-completos. Uma mulher que não engole mais sapos e se sente segura para deixar claro o que não quer. Também uma artista que, na pandemia, viveu a solidão, buscou olhar para si e encontrar caminhos. Ela conta que permitiu se experimentar: investiu na videoarte, criou um projeto nas redes sociais com vídeos sobre o confinamento (@projetosolidao) e deu ouvidos a si mesma. Escutou que era hora de acreditar no seu potencial, na autoralidade. E seguir com seu senso de urgência aguçado:
– Estou no lugar em que gostaria de estar? É não deixar nada para depois, fazer hoje, no agora.
Depois de passar quatro meses mais reclusa na Bahia, ela está de volta à ponte Rio-São Paulo, mergulhada em seus projetos. Um dos planos é lançar um longa de ficção baseado em sua vida – Bárbara nasceu em Campo Bom, perdeu o pai e a mãe cedo e decidiu tentar a vida artística em São Paulo ainda jovem. Em 1992, no Dia de Natal, sobreviveu a um grave acidente que deixou profundas cicatrizes em seu rosto, amenizadas por tratamentos posteriores. A colisão de carro aos 17 anos colocou a carreira da jovem em risco: Bárbara conta que cansou de ouvir que nunca seria atriz em razão das marcas em sua pele. Só que o futuro reservou uma exitosa carreira para a gaúcha, responsável por papéis marcantes em novelas – quem aí lembra da Renata, de Viver a Vida (2009), que enfrentava uma anorexia alcoólica, e das controversas Edith, de Amor à Vida (2013), e Jô, de O Outro Lado do Paraíso (2017).
A seguir, leia o bate-papo em que Bárbara fala sobre representatividade no cinema, o desafio da autoaceitação e como a pandemia serviu para se conectar com o que pretende fazer daqui para frente.
O documentário mistura sua vida pessoal, seu amor por Hector Babenco e também a dor da perda. Como se preparou emocionalmente para encarar o desafio?
Não teve muito distanciamento de vida e obra. A gente estava vivendo aquilo, o que se deu era para filmar para não morrer jamais. Era como se fosse um conforto para ele estar trabalhando, filmando, sendo registrado, para não enxergar o fim, sabe. Foi um alento para os dois, uma segurada de mão. Eu querendo registrar esse homem antes que não houvesse tempo, ao mesmo tempo cuidando, zelando, é tudo junto. Foi uma coisa só. A ideia sempre foi fazer um filme. Pedi para ele para fazer um documentário sobre ele em um dia em que ele estava muito ruim no hospital, eu estava com uma câmera na mão. Falei do documentário, ele perguntou quando a gente ia começar, e eu disse: “A gente já começou”. Isso se deu uns sete anos antes de ele falecer. Fui filmando sem pressa. Nos últimos dois anos, quando voltou a doença, o câncer, e ele ficou com medo mesmo, me pedia mais para ligar a câmera e o gravador. Quando ele ficava mal tinha vontade de falar. Quando estamos mais fragilizados, ou amando, confortáveis com a pessoa ao lado, nos abrimos mais. É a intimidade do casal. Ele partiu antes de terminar, logicamente. Daí veio o grande desafio do que deixar nessa uma hora, a vida dele inteira, a cinebiografia dele, não cabe tudo. Decidi por um retrato mesmo.
Assista ao trailer do documentário
Apesar de o filme ter recebido ótimas críticas ao redor do mundo, você ficou apreensiva com a recepção da família de Babenco?
Quando estreou lá fora, em Veneza, minha preocupação era se iam entender o filme. Quando voltei do Exterior, depois de vários festivais, apresentar para a família dele e para os amigos foi o dia mais especial e tocante, tinha medo. Medo do que eles iriam sentir. Mas foi uma emoção, sentiram ele muito próximo, me agradeceram. A filha dele (Myra Babenco) está comigo na produção do filme. Era uma responsabilidade muito grande, falar do homem, o que combinei com ele. Não era um filme de entrevistas. Prometi que ele seria o protagonista da sua própria história. Foi delicado, mas teve o companheirismo.
Como vê a luta das mulheres diretoras por reconhecimento? E quais você admira?
Até que enfim uma mulher, mais uma mulher. É o principal hoje, chegou a hora, não tem como parar. Ganhamos espaço cada dia mais, mas ainda é muito pouco. Não tem que ter essa diferença, ainda mais no cinema, algo tão autoral e artístico. Fico feliz e me sinto honrada de fazer parte dessa história, de colocar a mulher em pauta, a voz da mulher. Chegou a nossa hora, e admiro muitas diretoras. A Agnès Varda, que faleceu ano passado, é uma das minhas inspirações. Tem a Nadine Labaki, tem a (Sofia) Coppola, que é maravilhosa, são diretoras novas. A Petra (Costa, diretora de “Democracia em Vertigem”, que concorreu a Melhor Documentário no Oscar 2020) é minha produtora associada e amiga. Ela chegou lá, acima de qualquer expectativa, é uma grande documentarista e minha parceria de escuta.
Como você vê os avanços pela igualdade de gênero em espaços de poder?
Foi uma felicidade sem tamanho ver a Kamala (Harris, vice do presidente eleito Joe Biden, nos EUA) lá. Como é bom ouvir uma mulher falar nesses espaços. Mulher na política precisa existir mais, sabemos que é complicado ter a coragem de entrar, no Brasil, ainda hoje, sofremos muito nesse meio. Mas vimos a resposta nas urnas, quantas mulheres eleitas não só no Rio Grande do Sul, em São Paulo, Rio de Janeiro, em muitos Estados. Não só mais mulheres, mas trans também, diversidade. Chegou um momento em que não é mais possível voltar para trás.
A preservação da Amazônia e a luta pelos direitos do povo indígena são alguns temas que você costuma se engajar.
Não estou o tempo todo no palanque, não consigo. Acho que ser artista já é um ato político. Até gostaria de ter mais a lábia, o discurso, para falar mais, mas não sou assim. Tem coisas que são minhas limitações. Mas sei que tenho muitas amigas mulheres que se posicionam e apoio. Acho que tem a ver com ser filha de político. Meu pai faleceu quando eu era muito pequena, mas ele era político, e eu devia ter algo no sangue para ficar longe da política (risos). Não consigo me posicionar politicamente de forma tão forte quanto gostaria. Só sei que estou do lado de todas as mulheres. Acho que é necessário falar das questões da Amazônia, por exemplo, o que está acontecendo, o aquecimento global, estão matando nosso oxigênio.
A pandemia serviu como um momento de reflexão?
Foi uma volta ao útero. Fiquei muito sozinha, um susto não poder sair, estou sempre fazendo a mala. Foi positivo porque voltei para mim. Comecei a criar, fotografar, focar em videoarte, no autoral. Uma coisa que sempre quis fazer, mas não me permitia muito. Não me preocupei se era válido, se as pessoas iriam entender. Decidi fazer. Acabei fazendo lives, entrevistas, exposições, onde videoartistas estão. Fiz parte de um mundo que me isolava um pouco e que admiro muito. No fim, foi um presente estar no meio deles, entender que o que faço tem significado, me abriu portas. Percebi que é o trabalho autoral que mais me deixa feliz, que me leva adiante. Como o filme que fiz, é totalmente autoral, ninguém me guiou, fiz o que quis. Então, o autoral na pandemia me trouxe de volta, dizendo para ficar em mim. Daí criei o Projeto Solidão. Pensei que, se eu estava nessa situação, quantos estariam também e de que jeito. Pedi para um amigo fotógrafo registrar pessoas de rua no momento da pandemia. Não tem teto, o que comer, como lavar a mão. Como estão se protegendo? Também pedi para vários amigos, artistas, atores, artistas plásticos mandarem vídeos para a gente fazer uma rede de solidões, o que é solidão para cada um. Criei um perfil no Instagram, mas acho que o projeto vai nascer mais na frente. Talvez um documentário.
O autocuidado foi importante para encarar o distanciamento social?
Tentei fazer bastante ioga e meditação. Também tentei me exercitar, passei um tempão na Bahia, quase quatro meses, tentei manter a rotina. Só que, ao mesmo tempo, gerava um desconforto muitas vezes, vinha na minha cabeça que não era justo me exercitar, olha que louco. Tanta gente perdendo várias pessoas, está sendo muita tristeza, os números estão crescendo de novo. Acho que o que mais me ajudou foi meditar, rezar, saber que vai passar, é um momento da humanidade. Todo mundo está passando por uma suspensão no tempo. O que me manteve ativa foi me viciar em trabalhar, em criar. Acho que sempre cuidei do corpo e da alma, tem que ser junto.
Você completou 46 anos recentemente. O que falaria para a Bárbara de 20 anos atrás?
Ainda estou com a cabeça nos 36 (risos). É engraçado. O meu corpo fala que sou uma jovem menina, tenho energia de 30, uma guria de 26. É como se meu corpo tivesse 26 e a minha cabeça envelhecendo, amadurecendo. Obviamente que minha cabeça está muito melhor hoje, mas sinto mais o peso do tempo. Não tenho a consciência corporal da idade, acho que hoje é mais relativo. O 46 é o antigo 36. Alimentação, ginástica, tudo mudou tanto, as mulheres são mais ativas. Realmente percebo o tempo, na pandemia mesmo. Estou no lugar que gostaria de estar? Não deixar nada para depois, fazer hoje, focar no agora. Sempre tive um pouco isso, sempre fiz o que quis, o hoje. Agora mais do que nunca, não vou deixar nada para depois, de falar as coisas. Tinha coisas que me machucavam muito. Nesse meu lugar de direção, de produção, você depara com várias coisas, de misoginia, de preconceito, de ser mulher ser um problema. Uma ofensa aqui, uma ali. Hoje, não deixo de falar o que não quero, não admito e não acho justo. O tempo permite isso. Antes chorava quietinha, agora, não vou mais. Vou falar.
Hoje, há um movimento muito forte de amor-próprio. Recentemente, a modelo Giulia Dias, que tem uma cicatriz no rosto, foi capa de revista. É um mundo diferente do que você enfrentou quando sofreu o acidente em 1992?
A Giulia já é minha amiga, está na minha história. Fiquei emocionada ao vê-la na revista, para mim isso era impensável, sofri muito preconceito. Ouvi muitas coisas, “você nunca vai ser atriz com essa cicatriz”, “nunca vai fazer televisão, esquece”. Tive portas fechadas, mas nunca desisti. Quando vi a Giulia, me emocionou de uma forma gigante, porque é uma trajetória de 20 anos, sofri o acidente com 17 anos, faz muito tempo e as coisas mudaram, ainda bem. Espero que não seja só uma fase. Acho que quebrei tabus, logo farei um filme contando a minha história, então as pessoas vão entender o que passei.
Sofri o acidente com 17 anos, faz muito tempo e as coisas mudaram, ainda bem. Espero que não seja só uma fase. Acho que quebrei tabus.
Está com saudade das novelas?
Eu ia fazer uma novela das seis ano passado que foi suspensa e deve vir depois de março. Estou escalada, sou contratada pela Globo. Gosto muito de atuar, de fazer dramaturgia. Mas a direção está me chamando, tenho certeza de que daqui não saio, tenho muita segurança, até mais do que como atriz. Vou equalizar as duas coisas, ou abrir mão de atuar agora para dirigir mais, quero voltar ao teatro, sinto muito saudade.
E os planos daqui para frente?
Várias coisas, mas vou ter que começar a campanha para o Oscar. Fico no Rio filmando até dezembro, como atriz no filme da Julia Rezende, Porta ao Lado, junto com a Letícia Colin. Em paralelo, estou produzindo meu filme.
Você está há muitos anos radicada em São Paulo. Sente falta do Rio Grande do Sul?
Gostaria de ir mais para o Rio Grande do Sul, na minha cidade (Campo Bom) o cinema tem até meu nome, em homenagem, a sala Bárbara Paz. Sempre que posso vou, amo a minha região, a Serra, estou tomando chimarrão enquanto conversamos. Tomo chimarrão diariamente, curto muito, minhas origens são muito gaudérias. A última vez que fui foi antes da pandemia, no aniversário de um ano da minha sobrinha-neta, já sou tia- avó (risos).