Liana Pithan, Especial
Trabalho e vida pessoal não têm fronteiras muito definidas para Cris Guerra. Doze anos depois de sua trajetória profissional ser transformada a partir de dois blogs em que expressava tristezas e alegrias privadas, a escritora toma por princípio se colocar por inteira no que faz.
É a inteireza, ela avalia, que conduz seu caminho por diferentes papéis ao longo desse período, como mulher, mãe, palestrante, escritora e, mais recentemente, empreendedora digital.
Foi a busca por conciliar sentimentos opostos – a dor de ter perdido o marido quando estava no sétimo mês de gestação e a felicidade de ser mãe – que a fez começar em 2007 o blog Para Francisco, que daria origem ao seu primeiro livro, de mesmo nome. Nos textos, falava para o filho a respeito do marido Guilherme, vítima de uma parada cardíaca aos 38 anos. Pouco tempo antes, a autora havia sofrido dois abortos e perdido o pai com câncer, mesma causa da morte de sua mãe.
– A escrita foi minha tábua de salvação. Foi minha máquina de oxigênio. Eu era uma pessoa dividida. A presença do Francisco era maravilhosa, mas ao mesmo tempo me lembrava a ausência do pai dele. Parecia que aquela dor nunca ia passar. Acho que escrever sobre o pai foi uma forma de materializar o luto, torná-lo mais saudável. Então eu comecei a me relacionar melhor com a alegria de ter o Francisco – lembra Cris.
Pouco depois, ela criou o Hoje Vou Assim, primeiro blog de moda do Brasil com fotos do look diário ( famoso #lookdodia), que inspirou uma geração inteira de fashionistas. A iniciativa parecia contrastar com o Para Francisco, mas já era um sinal de que a terapia pela escrita do primeiro blog estava ajudando Cris a recuperar a vontade de buscar o belo:
Tenho muita alegria de ser a mãe possível, porque assim eu também posso ser mulher, ser profissional, ser feliz. Sinto que não estou em dívida comigo".
CRIS GUERRA
– Como eu tinha perdido o meu marido, é como se a minha feminilidade estivesse abalada. Precisei fazer as pazes com a mulher, cultivar a alegria, entender de novo qual era a minha identidade. Para dar conta de todos esses sentimentos, mais o fato de ter um filho e voltar à condição de mulher, sozinha, foi fundamental o blog de moda – relata a autora, que tirou de sua experiência com o mercado a inspiração para o segundo livro, o Moda Intuitiva (2013, Editora Planeta, 192 páginas).
Descobertas pela escrita
O processo de ressignificação da dor parece claro quando observado em retrospecto, mas foi puro instinto de sobrevivência, conectado à intuição, aos desejos internos e ao autoconhecimento, afirma a autora. Pois foi justamente para “embarcar em um processo de autoconhecimento” que a mineira de Belo Horizonte começou a escrever aos 13 anos de idade. Irmã caçula de uma família de cinco filhos, Cris sentia que não era ouvida, como se tivesse chegado quando o elenco já estava formado, cabendo-lhe lugar apenas na plateia:
– Quando cheguei (na família), eu era um elemento dissonante. Brinco que eu arrumei um lugar na arquibancada, mas depois vejo que esse lugar acabou me dando uma oportunidade de ter um olhar de cronista para a vida, como se eu observasse as pessoas.
Isolada, enquanto os dois irmãos e as duas irmãs formavam pares, ela era considerada “reclamona e chata”, mas admite que talvez errasse o tom e não conseguisse comunicar bem seus anseios. Escrever diários surgiu então como uma forma delicada de se expressar, de pensar melhor antes de falar. A escrita, Cris analisa, foi importante para ela aprender “uma forma melhor de estar no mundo”.
– A escrita era uma forma de existir, de estar perto de mim, de lidar com as minhas dores, uma forma de terapia. Mais adiante, com quase 30 anos, fiz terapia, depois psicanálise e não parei mais. Faço muitas palestras contando a minha história. É impressionante: quanto mais o tempo passa, quanto mais eu me distancio ou me reaproximo da minha história, mais eu ressignifico e entendo coisas que eu não tinha entendido antes, a visão vai ficando mais rica – afirma Cris, cujos dois últimos livros também são frutos de autodescobertas, Procurava o Amor em Jardins de Cactos (2018, editora Gulliver, 186 páginas) e Escrever uma Árvore, Plantar um Livro (editora Gulliver, 152 páginas), lançado recentemente, a respeito de amor e maternidade, respectivamente.
Uma carreira pela palavra
A virada na vida profissional não foi tão radical ao se considerar que o fio condutor começou pelo exercício da expressão pela palavra escrita, nos diários de adolescente. Foi esse hábito que a levou a escolher o curso de Publicidade e a atuar por quase 20 anos como redatora publicitária e, mais tarde, a converter-se em autora de blogs, livros, artigos em revistas.
A palavra falada, atualmente exercida em dezenas de palestras pelo Brasil, é o campo que Cris ainda deseja explorar mais, sobretudo em vídeo. Enquanto a oportunidade na TV não acontece – não há pressa, garante – ela estreia em duas novas frentes: como professora de pós-graduação e como apresentadora de podcast.
A docência será um prolongamento de seu livro Moda Intuitiva, que vai se transformar em uma disciplina do curso de pós-graduação Moda e Inovação da UniBH, com a curadoria do estilista mineiro Ronaldo Fraga. A disciplina vai abordar as especificidades dos corpos, a rejeição de fórmulas padronizadas no vestuário, o caminho para tornar a relação com a moda mais satisfatória e como fazer dela uma ferramenta de expressão individual.
A transposição das vivências pessoais para o trabalho é a tônica do podcast semanal estreado este mês, As Perennials (asperennials.com.br). Às vésperas de completar 49 anos, Cris divide o microfone com as amigas jornalistas Daniella Zupo, 47 anos, Fernanda Ribeiro, 46, e Natália Dornellas, 43. As quatro abordam de forma bem-humorada assuntos comuns à faixa etária de 40 a 50 anos, sem estereótipos nem preconceitos. Com temperamentos e bagagens diferentes, elas têm em comum a desinibição para compartilhar experiências pessoais para ilustrar aquilo que as ouvintes também vivenciam. Se reconhecer no outro também é um meio de se conhecer. O público de Cris sabe bem disso.
Amadurecimento como autora e mãe
Cris amadureceu do primeiro livro até o mais recente. Se Para Francisco foi escrito no calor dos sentimentos e evidenciava os conflitos da maternidade e da viuvez simultâneas, Escrever uma Árvore, Plantar um Livro acompanha a autora em seu processo de construção – e muitas vezes reconstrução – de uma maternidade livre de peso, culpas, autocobranças e sobrecargas de expectativas.
– Tenho muita alegria de ser a mãe possível, porque assim eu também posso ser mulher, ser profissional, ser feliz. Sinto que não estou em dívida comigo. Acho que a gente precisa ser feliz, a maternidade é uma das nossas facetas, mas a gente não se define só sendo mãe – reforça Cris, ao analisar a trajetória de sua obra.
O conteúdo emotivo do texto dá à leitura uma atmosfera confessional, como se estivesse lendo a carta de uma amiga querida. É um livro sobre dúvidas, percursos e buscas, não sobre respostas: “Não sei qual é o caminho mais seguro, faço escolhas erradas e nem sempre sei nem pra onde estou indo. Mas não largo a sua mão”, resume a crônica Meu Companheiro de Viagem.