No primeiro dia de estágio na ONG ambiental Aruana, Clara Ferreira se impressiona com um mapa pendurado, onde se veem todos os países pelos quais a equipe já passou. Em seguida, observa recortes antigos de jornais que exibem a foto das sócias-fundadoras e a história das três amigas que salvaram um parque na adolescência e hoje investigam crimes ambientais.
– Olhando para elas, parece que tudo é possível – diz a personagem de Thainá Duarte em uma das primeiras cenas da série Aruanas, lançada na última quarta-feira (3).
A representatividade feminina está em frente e atrás das câmeras da obra dirigida e assinada por Estela Renner para o serviço de streaming Globoplay, que tem Leandra Leal como uma das protagonistas – e uma equipe com mais da metade composta de mulheres.
– Ter o olhar feminino contando a história de quatro mulheres protagonistas faz muito sentido. Costumo dizer que toda vez que uma mulher vê outra mulher fazendo algo, isso a inspira de alguma forma – afirma a atriz em entrevista concedida à Revista Donna por e-mail.
Mulher apaixonada pelo que faz e em busca do equilíbrio entre carreira e maternidade, ela transforma suas bandeiras sociais em trabalho. Leandra, 36 anos, mãe de Julia, quatro anos, enxerga-se refletida na personagem Luiza.
Em Aruanas, a atriz vive uma ativista no país que mais mata defensores do ambiente no mundo – em 2017, foram 207 assassinatos no total, sendo 57 no Brasil, de acordo com a ONG internacional Global Witness.
Com parceria técnica do Greenpeace, a coprodução entre Globo e Maria Farinha Filmes conta ainda com o apoio de mais de 20 ONGs, como Anistia Internacional, WWF-Brasil e ONU Mulheres. Todos os 10 episódios já estão disponíveis na plataforma de streaming Globoplay. O público do Exterior também pode comprar a série, traduzida para 11 idiomas. Parte da renda será doada para uma iniciativa de proteção da Floresta Amazônica.
A estreia de Aruanas ocorreu poucos dias depois do lançamento de um relatório da ONU que alerta para o risco de um “apartheid climático”, um cenário em que apenas os mais ricos poderiam escapar do calor e da fome causados pelo aquecimento global. No mesmo documento, o presidente Jair Bolsonaro é criticado por prometer abrir o território da Floresta Amazônica para a mineração.
A realidade ambiental e sociopolítica brasileira é pano de fundo para o enredo da série, que apresenta ainda dramas vividos por mulheres, como relacionamentos abusivos, a interrupção de uma gravidez e os conflitos entre carreira e maternidade. O roteiro “bem amarrado”, nas palavras de Leandra, foi fundamental para que ela aceitasse o convite – além de um empurrãozinho da amiga e colega de elenco Taís Araujo, que interpreta a advogada Verônica Muniz, sócia de Luiza na fictícia ONG Aruana.
Conselheira do Greenpeace e engajada em causas feministas, Leandra ecoa as críticas ao presidente brasileiro em suas redes sociais, em meio a manifestações sobre casos como a morte de Marielle Franco e a tragédia de Brumadinho. Na campanha presidencial de 2018, aderiu publicamente ao #EleNão.
A urgência da pauta ambiental também foi apontada como motivo da atriz para embarcar em Aruanas. Muitas das bandeiras que defende estão presentes não somente na trama, mas na produção, que conta com atores locais e mais de 90% do figurino de roupas de segunda mão.
Costumo dizer que toda vez que uma mulher vê outra mulher fazendo algo, isso a inspira de alguma forma"
LEANDRA LEAL
Com tanto em comum com a personagem, ficou mais fácil encarnar Luiza – até dublê a atriz dispensou nas cenas de ação. Faltava apenas um corte curto de cabelo, sugestão de Taís Araujo por ser “prático e forte”, contou Leandra.
Já são 27 anos de carreira artística desde seu primeiro papel em Pantanal, em 1990, novela da qual participava sua mãe, a também atriz Ângela Leal. Desde então, o currículo de Leandra enfileira dezenas de novelas e séries para a TV, peças de teatro, produções e atuações no cinema e em videoclipes. São mais de 20 prêmios como atriz.
Neta de Américo Leal, Leandra foi criada em meio às coxias e camarins do teatro dirigido pelo avô, o Rival Petrobras, no Rio de Janeiro. Um dos primeiros palcos a abrigar artistas travestis no Brasil, o espaço, do qual é sócia-proprietária ao lado da mãe, inspirou Leandra a dirigir seu primeiro longa, Divinas Divas (2016). O filme conta as histórias da primeira geração dessas artistas, nos anos 1960.
Foi vencedor de três prêmios do público (SXSW 2017, Festival do Rio 2016 e Festival de Aruanda 2016), além do Prêmio Felix no Rio e Melhor Direção em Aruanda.
Enquanto Aruanas é exibido no streaming, Leandra segue os ensaios da peça Pi - Panorâmica Insana, que já passou pelo Rio e por São Paulo e, em breve, estará em cartaz em Salvador. Com 11 mil peças de roupas espalhadas pelo palco, o espetáculo provoca reflexões sobre a condição humana e o caos social a que a humanidade chegou. Dirigida por Bia Lessa, a peça dividiu o prêmio de melhor espetáculo de 2018 com Um Panorama Visto da Ponte. A distinção é concedida pela Associação Paulista de Críticos de Arte.
Salvo alguns cliques de paparazzi, que se ocupam em flagrar famosos estacionando carros no Leblon, o que se vê da vida pessoal da atriz são poucas manifestações sobre a filha, Julia, em suas redes. Leandra já falou sobre o processo de adoção da menina e da separação do pai, o advogado Alê Youssef, secretário de Cultura da Cidade de São Paulo. Em uma foto publicada de Alê e Júlia em seu Instagram, ela escreveu:
– O amor não acaba nunca, se transforma.
A seguir, confira a entrevista na qual Leandra fala do que mais interessa: seu trabalho.
O que pesou para você aceitar embarcar no projeto de Aruanas?
Os roteiros. Eram muito bem amarrados, bem construídos. E também porque acho o tema original e necessário. Urgente de ser falado.
Você vive uma ativista no país que mais mata ativistas no mundo e onde uma mulher é estuprada a cada nove minutos. De que forma a sua trajetória particular, de uma artista que se posiciona publicamente sobre questões sociopolíticas, ajudou você a construir a sua personagem em Aruanas?
Super! Não era um universo distante para mim. Me identifico com a Luiza em várias questões, desde o drama pessoal dela, de encontrar equilíbrio entre carreira e a criação do filho. E também na paixão que ela tem pelo trabalho. Acho que para todo ativista e artista, o trabalho não é só uma fonte de renda, um job, é realmente uma vocação. E ela se relaciona assim com o trabalho. A série tem como pano de fundo (o ativismo), mas uma questão importante que ela levanta para o debate é esse título vergonhoso que a gente sustenta de ser o país que mais mata ativistas no mundo. Quando na verdade um ativista, um defensor da natureza deve ser idolatrado, preservado, respeitado, cuidado. Ele está fazendo algo não só por ele, mas por todos nós.
Você acha que a ficção tem o poder de furar bolhas e chamar a atenção de outros públicos que hoje não estão sensíveis às urgências das questões ambientais?
Sem dúvida! Através da emoção, a arte consegue se comunicar além das bolhas e polarizações. Aruanas é muito feliz nisso. São personagens complexas que conduzem a ação.
Por que você optou por dispensar dublê? Que tipo de cena você teve de fazer que te desafiou mais?
Através da emoção, a arte consegue se comunicar além das bolhas e polarizações. 'Aruanas' é muito feliz nisso. São personagens complexas que conduzem a ação".
LEANDRA LEAL
É uma série de ação. Tudo foi resolvido com o enquadramento da câmera e alguma capacidade minha (risos). Mas não foi nada arriscado. Nunca me colocaria em risco.
Na Comic-Con Experience 2018, você comentou que a Taís Araujo, além de ter “botado pilha” para você aceitar o trabalho em Aruanas, também “pautou os cabelos” das atrizes. Seu atual corte mais curtinho foi feito especialmente para a Luiza? Está pensando em adotar o look?
Taís é a grande responsável por eu estar no projeto. Ela também sugeriu esse cabelo, por ser prático e forte. Estou tentando deixar crescer, mas gosto muito de cabelo curto.
As equipes da série tem forte presença de mulheres. Qual a importância da representatividade feminina na arte e em outras áreas?
É superimportante ver mulheres ocupando posições de comando. Ter o olhar feminino contando a história de quatro mulheres protagonistas faz muito sentido. Costumo dizer que toda vez que uma mulher vê outra mulher fazendo algo isso a inspira de alguma forma. Abre um caminho para o sonho e, assim, a realização.
Falando nisso, você tem uma referência feminina em casa, sua mãe, a atriz Ângela Leal. Que diferença fez para sua carreira ter próximo de você uma artista mulher?
Uma mulher, artista, independente, livre, divertida, amorosa, politizada. Ter o exemplo da minha mãe guiou diversas escolhas na minha vida.
Como tem sido estar à frente do Teatro Rival, herança de seu avô?
Atualmente a minha mãe está na direção do Rival, eu só ajudo. É um momento muito difícil para quem investe em cultura no país, para quem produz e mantém espaços dedicados à cultura.
A peça Pi – Panorâmica Insana reinaugurou dois teatros, no Rio de Janeiro e em São Paulo. O que isso representa em um momento em que a cultura é tão atacada no Brasil?
É um alento ver dois espaços reinaugurando, pessoas querendo investir em cultura. É um luxo estar em cena nesse momento, com essa peça. Não existe outra coisa que eu queria estar fazendo, e sei do privilégio que é estar em cena agora.
Você está escrevendo a série A Vida Pela Frente, em parceria com as suas sócias na produtora Daza Filmes. Poderia falar um pouco mais sobre o projeto? O quanto é inspirado nas adolescências de vocês?
Eu e as minhas sócias estudamos no mesmo colégio, somos amigas desde a infância. A série se passa na virada dos anos 1990 para os 2000. Conta a história de uma turma de amigos se formando no colégio, com 17 anos. Retrata o rompimento que leva o adolescente a enfrentar a vida adulta, as experiências radicais que nos transformam e nos fazem ser quem somos.
Filmes como Kids e outros clássicos dos anos 1990 são citados como referências para essa série. Foram obras que marcaram você na adolescência?
Sim! Minha Vida de Cão também é uma série que nos marcou bastante.
Você trabalhou em Confissões de Adolescente, que tratava de temas como o primeiro beijo e a decisão sobre o vestibular. O quanto esses assuntos ainda são questões para o adolescente de hoje? Estão presentes na obra de vocês? Há outros temas mais contemporâneos?
Vários movimentos que bombam hoje em dia começaram naquele período. É o início da internet, do celular. Isso tudo modificou bastante a adolescência, mas os dramas, as transformações, inseguranças são atemporais.
Sei que você não costuma falar de vida pessoal, mas temas como família, maternidade e adoção apareceram em suas redes sociais depois da chegada da Julia. O que mudou na sua vida e no trabalho depois que se tornou mãe?
Tudo. Absolutamente tudo. A maternidade me fez querer ser melhor e com mais tranquilidade.