"A Maria Teresa é um grande personagem. Racista, machista, alguém que admira o marido que rouba. Mas é uma mãe zelosa, uma esposa exemplar. Tem herdeiras na atualidade" Foto: Alexandre Campbell "Minha mãe é um caso de obstinação artística impressionante. Ela ataca os personagens como se fossem um prato de comida. Luta por eles, até hoje, com uma fome de leoa" Foto: Genaro Joner "Minhas amigas estão fazendo ótimos papéis no cinema, na televisão, no teatro. Papel bom é difícil sempre, e acho que minha geração tem envelhecido muito bem, como um bom vinho" Foto: Divulgação/TV Globo
Caue Fonseca
Falando sobre a sua profissão de origem, a atriz e (cada vez mais) escritora Fernanda Torres cita a imagem de um mosaico grego que os seus pais, os também atores Fernando Torres e Fernanda Montenegro, tinham reproduzido na entrada de casa:
– Era Dionísio, o deus do teatro, cavalgando um tigre. O dorso da fera é o palco, o lugar instável, em eterno movimento, pronto para te devorar. Essa instabilidade é muito clara na profissão de ator, nas artes, mas acho que ela está presente em tudo na vida.
O novo romance de Fernanda, ponto de partida dessa entrevista a Donna, aborda essa instabilidade nos seus piores momentos.
A Glória e Seu Cortejo de Horrores (Companhia das Letras), seu terceiro romance, é narrado por Mario Cardoso, um ator sexagenário que monta uma versão catastrófica de Rei Lear, de Shakespeare. Catástrofe que não acontece da noite para o dia, mas na carona de uma longa sequência de pequenas tragicomédias, como um coquetel pesado demais, que faz a plateia dormir na estreia, e um ataque de risos no elenco – crise, esta, que a própria Fernanda experimentou no palco e transformou em ficção. Mario vivencia passo a passo o pesadelo de qualquer ator: a crítica demolidora, o ostracismo, o endividamento e o retorno aos problemas mundanos, como a mãe com sintomas de senilidade. Em meio à derrocada, o personagem reflete sobre a arte em um momento pra lá de oportuno.
– Não sabia se a trajetória de um ator brasileiro teria interesse. Mas calhou de o livro ser lançado em uma hora de ataque à produção artística, com toda a discussão sobre moralidade e censura. O romance ganhou um significado para além do meu umbigo. A crise do personagem se confunde com a do país, e isso é um dos traços mais potentes do livro. O Brasil passa por um momento de negação, assim como o Mario. Esse ódio à cultura é, também, um ódio contra si mesmo.
Aos 52 anos, Fernanda fala sobre escrever, temer e amadurecer. Nas suas reflexões, traz à tona o momento político atual, critica a cafonice das redes sociais, relembra polêmicas, como a publicação em 2016 do texto “Mulher” – que causou controvérsia por frases como “A vitimização do discurso feminista me irrita mais do que o machismo”, e gerou um segundo texto de mea-culpa – e manifesta o estranhamento de envelhecer no século 21:
– Sou uma mulher do século 20 e entendo a arte ainda através dele.
Uma das crises que o protagonista do seu romance vivencia é a de ter perdido o seu lugar no mundo. Você acha que é um processo inevitável essa inadequação ao envelhecer?
Acho que essa inadequação é inevitável. Os jovens têm muita ansiedade e muitas certezas. Com a idade, você apanha tanto, você sobe e desce a montanha-russa tantas vezes, que acaba se acostumando a viver na instabilidade, a não lutar contra ela. A única maneira de sobreviver é desenvolver um certo sentido de aceitação. Há algo triste nisso, porque você perde o arroubo, as paixões, a revolta e o entusiasmo, tão comuns na juventude. Por outro lado, você aprende a entrar numa velocidade de cruzeiro, que te preserva, te resguarda para dar conta da maratona. O jovem é um corredor de cem metros, o velho é um maratonista.
E você, como se enxerga nesse processo?
Recentemente, aos 50 anos, senti que a inadequação havia chegado para ficar. Eu não reconheço muito o mundo como ele está, é um lugar que nada tem a ver com aquele que eu projetei aos 20, está tudo trocado, valores que eu achava imutáveis. Apanhei do novo feminismo, mas aprendi as novas regras. Elas fazem sentido, mas a minha experiência passada, com os Dzi Croquettes (grupo de teatro da década de 1970), com aquele mundo hipersexualizado em que eu cresci, pré-aids, pós-1968, isso não vai mudar em mim. Cresci em um país miscigenado e sincrético, que talvez não seja o Brasil do futuro. Eu vou me acostumar, mas estranharei para sempre essa mudança. A idade é uma coisa muito louca, a sua memória é tão ou mais real do que a realidade mesmo. Cresci em uma casa no Jardim Botânico, ela foi demolida. No lugar, cresceu um prédio hediondo, de vidro espelhado. Quando passo pela minha antiga rua, olho o prédio e vejo a casa. Ela é mais concreta do que o prédio, apesar de não estar mais lá. Não há como explicar isso para os filhos, para os que nunca viram aquela casa. É uma sensação que se tem a sós, e que te dá conta do quanto o tempo passou e você envelheceu. A idade é uma experiência muda, solitária e reflexiva. Parece muito com o ato de escrever.
Quando você menciona que “apanhou do novo feminismo”, se refere à polêmica do texto “Mulher” no blog “Agora é que são elas”, certo? O que ficou daquele episódio?
Eu fui apresentada ao novo feminismo ali. Aprendi muito. Não tenho filhas, se tivesse, talvez soubesse o que estava ocorrendo. Eu percebi, ali, que eu pertencia a outra época. Eu via o feminismo como algo resolvido, pelo menos para mim. Na minha casa, na casa em que cresci, minha mãe era a figura empoderada. Minha tia era empoderada, as mulheres eram todas poderosas na minha família. Minhas amigas também, todas livres e donas do próprio nariz. O machismo não era uma questão relevante, a gente nem ligava para ele. Mas o que existe agora é um movimento solidário de mudança geral de paradigma, de comportamento, de conduta nas empresas, na imprensa, no mercado, na família, na sociedade. O Brasil é um dos países que mais mata mulheres. Esse novo feminismo deseja agir para além das “zonas sul” das cidades. Se engajar, algo que não ocorria na minha geração. Quando eu era mocinha, o feminismo já tinha passado, era algo conquistado, mas ele voltou mais amplo, geral e irrestrito. Aprendi muito, aprendi que não se pode mais falar do lugar de exceção. Tanto o primeiro texto quanto o mea-culpa são sinceros e verdadeiros, eu me reconheço nos dois, e acho que avanços relevantes estão acontecendo por conta dessa nova onda antimachista, que não admite meias cantadas, piada de mau gosto e sabe que um tapinha dói.
O livro começa com o protagonista vendo pesadelos se tornarem realidade: o envelhecimento sem dignidade, o fracasso, a falência, o ostracismo... São pesadelos de qualquer artista?
Eu sofro de pessimismo crônico, tenho complexo de peru: vivo morrendo na véspera. A regra é falhar, se algo der certo, é exceção. Acho que, se fosse médica ou engenheira, sofreria da mesma deformidade, esperaria que os pacientes morressem e as pontes caíssem. É uma forma de proteção, para não ter que enfrentar o desapontamento, tão comum na vida de qualquer cidadão. A profissão de ator não tem nenhuma segurança. As peças terminam, as novelas acabam, os filmes passam, tudo é passageiro. Não há emprego fixo, nem contrato longo que te traga conforto. Você tem que se reinventar a cada trabalho. A experiência e o tempo te trazem calma, mas você perde a surpresa, o rosto virgem para um papel, você tem que se virar do avesso para provar que é outro, que tem mil caras, mil sentimentos. Muitas vezes, eu achei que não tinha volta, que ia ficar por ali. Mas, pelo menos até aqui, sempre encontrei uma saída. Escrever foi mais uma delas, foi parte dessa reinvenção para continuar criativa, viva.
Seja com ironia ou franqueza, seu romance traz reflexões sobre o papel do teatro, da TV, e da arte como um todo. Como você enxerga essa questão hoje?
O terceiro milênio se provou tecnológico e estatístico. As ciências humanas foram jogadas para segundo plano, junto com a arte. Não sou saudosista, sei que a antiga opinião pública era formada por uma fatia muito pequena da população. A democratização das redes sociais aconteceu, a multiplicação de vozes, mas a cultura de massa piorou. Antes, Apocalipse Now era um filme mainstream, hoje, só dá Thor. Todos os atores shakespereanos do West End estão empregados como vilões da Marvel, em Hollywood. As séries de televisão se sofisticaram, o que foi uma vitória dos home theaters, mas só. Eu sinto como se estivéssemos vivendo o deslumbre pelas máquinas, somos viciados no celular, temos uma dificuldade enorme de nos concentrar, de experimentar o tal suspension of disbelief, que é como se chama a sensação de crer na ficção, de aceitá-la como verdade. Acho que esse deslumbramento vai passar, que o vício das redes vai se tornar cafona. Já é. Esse desespero de informação, de conexão, isso vai acalmar. As pessoas vão encher o saco. O teatro é um grande antídoto para isso. A música, a literatura, um livro... Como é bom ler um livro. Acabo de ler Os Maias, nunca tinha lido. Que experiência maravilhosa é essa, de se entregar a uma ficção, de ser levada por ela. O celular não te dá isso, o caça-níquel em que se transformou o Facebook tampouco.
Há quem diga que o livro, o cinema e o teatro resistirão justamente porque não têm notificações de chamada...
No futuro, a desconexão será um artigo de luxo, e as pessoas irão ao teatro para ver outros seres humanos existirem. As artes plásticas terão, como já têm, o valor do objeto, não no sentido do dinheiro, mas do valor material, real das coisas. Um editor catalão me disse que, para grande surpresa do mercado, os jovens gostam de livros impressos. Gutemberg vai resistir. Um livro é um objeto de desejo, agradável ao tato, aos sentidos. A psicanálise, tão desacreditada quanto o teatro, também vai resistir. Você pode entupir um sujeito de remédio, mas ser ouvido por alguém, por outro, presente, diante de você, tem um significado profundo, desde a invenção da confissão, que nenhuma pílula é capaz de reproduzir. Eu adoro informação, consultar mil dicionários, filmes, ter minhas dúvidas desfeitas com um simples acesso ao Google, mas detesto o triunfo da imbecilidade. Essa manada de seguidores conectados ao nada. Essa religião guiada pelo mais do mesmo da estatística. Sou uma mulher do século 20 e entendo a arte ainda através dele.
O que você pensou ao ver manchetes como a da exposição cancelada em Porto Alegre e a polêmica sobre uma das performances do MAM?
Existe uma dose considerável de oportunismo político que, em uma hora de desmantelamento das instituições, escolheu um bode-expiatório, uma suposta ameaça moral das artes, para esconder as vilanias que levaram o país para o ralo. A desigualdade social é a grande imoralidade, em curso há 500 anos. Nas últimas décadas, houve um crescimento das religiões dogmáticas, evangélicas, que ocuparam, é preciso reconhecer, a ausência do Estado. A igreja evangélica atuou nas comunidades carentes, deu ordem, assistência, pertencimento e sentido de fé. Ela organizou lideranças políticas e, agora, colhe os frutos. Mas a igreja evangélica, ao contrário da católica, não admite o sincretismo religioso. Não reconhece a força do candomblé e tem uma leitura literal da Bíblia, que renega até Darwin. Calvino chegou. Aos poucos, estamos nos tornando mais puritanos, mais norte-americanos, tanto nas bandeiras conservadoras, quanto nas progressistas. Isso é uma grande mudança no país. As artes plásticas pareciam incólumes à crise recente que se abateu nas demais. Ao contrário do cinema, do teatro, da música e da televisão, as artes plásticas viviam um florescimento. Mas foi justo com elas que o confronto aconteceu. Um estranhamento inconciliável de um Brasil que não conhece o outro Brasil.
É mais um ponto em que o país se divide...
Muitas das lutas identitárias também passaram a rejeitar o caminho do meio: ou é preto ou é branco, ou é mulher ou é trans, ou é gay ou é homem. Estamos classificando tudo, separando tudo. O “homem cordial” o dos acertos pessoais, deu nos escândalos de corrupção. Está todo mundo puto, não há uma zona de confluência, de acordo, seja na educação, na arte, na política, na economia. Mas é um fenômeno que não está ocorrendo apenas no Brasil, essa radicalidade, esse desprezo pelas conquistas progressistas. A globalização concentrou riqueza e estrangulou os que viviam do trabalho. O medo é o pai, um ressentimento nacionalista, revanchista, antiprogresso, modernidade, anticultura.
A arte, que já foi o bastião da liberdade, da humanidade e da justiça, hoje é vista como supérflua, elitista, permissiva, custosa e inútil. Creio que essa é a origem do caldeirão que explodiu na exposição do Santander, nos discursos que acusam os artistas de mamarem nas tetas. Vai demorar a passar, mas o Brasil tem uma cultura suficientemente forte para devolver com arte, com ações positivas esse momento de negação e ataque.
Você está na TV com Filhos da Pátria, um seriado que se passa no século 19 e tem algo a dizer sobre a formação ética do brasileiro. Você enxerga nos personagens – em especial a sua, Maria Teresa – a raiz de alguns comportamentos que enxergamos hoje no noticiário?
A Maria Teresa é um grande personagem. Racista, machista, patrimonialista, seguidora do “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Ela é alguém que admira o marido (Geraldo, personagem de Alexandre Nero) que rouba, que acha que a esperteza é sinônimo de personalidade, uma brasileira com delírios de europeia.
A Maria Teresa é um horror, mas é uma mãe zelosa, uma esposa exemplar, uma mulher esforçada, uma devota criatura, que luta pelos seus, que se desdobra para casar uma filha, para fazer do filho iletrado alguém. A Maria Teresa tem herdeiras na atualidade. Ela não se parece nem com a Claudia Cruz (mulher do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha) e nem com a Adriana Ancelmo (mulher do ex-governador Sérgio Cabral), mas ambas, na hora de prestar depoimento, se valeram de figura da mulher do lar, para se safar das acusações. Eu achei muito curioso. Elas se travestiram de Maria Teresa: dóceis, alienadas quanto aos gastos do marido, quanto ao preço dos mimos, das joias... Existe uma entrevista incrível do casal Cunha, um retrato deles na intimidade, apaixonados, amorosos, e, quando o repórter pergunta para a Claudia, com o Eduardo olhando para ela, o que mais ela admira no marido, Claudia responde: “o caráter”. A Maria Teresa também diria o mesmo do Geraldo.
Atrizes tem debatido a diminuição dos bons papéis para mulheres acima dos 45 anos. Qual a sua opinião?
Olha, aos 20, qualquer papel é papel. Com o tempo, a gente vai ficando mais exigente, e os papéis, mais escassos. Como diz minha mãe, os primeiros 20 anos são fáceis, depois piora. Um dos problemas da profissão de atriz é viver à mercê dos convites. É preciso aprender a não esperar por eles. O teatro é um instrumento importante, te dá a chance de produzir, de criar as suas próprias oportunidades. Mas não penso muito nisso, se há ou não boas chances, me preocupo mais em cavar meus espaços. Mas, agora que você me perguntou, parei aqui para pensar, e lembrei das minhas amigas fazendo ótimos papéis no cinema, na televisão. A Débora Bloch acabou de fazer (a minissérie) Treze Dias Longe do Sol num papel maravilhoso. Eu fiz a Maria Teresa, acabo de receber dois ótimos roteiros. A Adriana Esteves tem papéis muito melhores hoje do que tinha na juventude. A Patrícia Pillar arrebenta. A Glória Pires nem se fala: fez a Nise (Nise – O Coração da Loucura, filme de 2016), faz filme, novela, séries, sem parar. A Júlia Lemmertz, eu vi na peça (A Comédia Latino-Americana) do (Felipe) Hirsch, estava sensacional, na assassina da novela das seis (Novo Mundo) também. A Andréa Beltrão transformou Antígona num monólogo; a Drica Moraes está filmando com o Jorge Furtado. A Renata Sorrah foi trabalhar com o Márcio Abreu. Papel bom é difícil sempre, e acho que minha geração tem envelhecido muito bem, como um bom vinho.
Você convive com aquela que talvez seja uma das atrizes mais longevas e bem-sucedidas da história da dramaturgia brasileira, sua mãe, Fernanda Montenegro. O que você aprendeu com ela sobre amadurecer como mulher no meio artístico?
O teatro, no Brasil, tem uma frente de mulheres muito fortes. Se não fosse Procópio (Ferreira), Raul (Cortez), (Antônio) Fagundes e outros tantos, eu diria que o teatro brasileiro é quase um matriarcado. Dulcina de Moraes, Eva Todor, Henriette Morineau, Cacilda Becker, Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro, Marília Pera, Regina Casé... a lista não tem fim. Minha mãe é um caso de obstinação artística impressionante. Ela ataca os personagens como se fossem um prato de comida. Luta por eles, até hoje, com uma fome de leoa. Ela é uma grande mãe, mas acho que se sente feliz mesmo é em cena. Ela tem uma resistência física inacreditável, apesar de ter sido muito magrinha e dona de uma aparência frágil. Eu sou mais relapsa, mais estragada, menos operária, mas também tenho o meu valor. A Andréa Beltrão é um caso mais parecido com o dela e o da Bibi. A Andréa tem a mesma devoção à cena, a realização absoluta sobre um palco. No início, eu me espelhava muito na minha mãe. Achava que eu teria uma vida parecida com a dela. Depois fui trilhando meu caminho e, hoje, somos diferentes. Embora parecidas na independência artística, que foi o maior legado que eu herdei dela e do meu pai.
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