O livro Melhor Não Contar, de Tatiana Salem Levy, faz o retrospecto incômodo de um tempo em que não entendíamos direito o que nos acontecia. Eu, por exemplo, custei a compreender que a palavra violência abrangia mais do que a brutalidade física. Não identificava claramente as violências emocionais. Nunca me estapearam, me feriram com instrumento cortante ou me arrastaram no chão pelos cabelos. Achava que isso bastava para me considerar uma sortuda, sem a vivência de maus-tratos.
Quando jovem, escutava relatos de mulheres vítimas de abusos sexuais, e elas me pareciam exagerar ao denominá-los como tal. Enquanto eu as escutava, me vinham à cabeça apenas expressões como "foi uma inconveniência" ou "que insensibilidade". Me solidarizava com as dores delas, mas tinha dificuldade de classificar a intenção maliciosa de um parente, por exemplo, como uma agressão passível de um trauma.
Nossas filhas e netas fazem parte desta mulherada que não leva mais o abuso para o escuro do quarto nem chora sozinha sobre o travesseiro
É assim que a cultura machista domina nossas mentes. Se não haviam imobilizado a mulher e feito algo à força com ela, então não era violência. Era qualquer outra coisa desagradável, e a melhor saída era calar. Como se um beijo roubado por um tio fosse apenas desagradável. Como se o marido de uma amiga que roçasse as mãos nos seus seios fosse apenas desagradável. Como se um médico que se prolongasse desnecessariamente em um procedimento íntimo fosse apenas desagradável.
O mundo é desagradável para muita gente, quase o tempo todo. As coisas não saem como desejamos, pessoas nos magoam, planos fracassam, há um desconforto emocional que não cessa, e nada disso é realmente um abuso, e sim uma contingência da existência humana. O que caracteriza o abuso é a intenção deliberada de te constranger, o descuido obsessivo com teus sentimentos, a sedução opressiva que te apavora, a culpa transferida justo para a inocente da história. Há muitas maneiras de se infernizar a alma de uma adolescente e de destruir a confiança de uma mulher sem enfiar nada dentro de seu corpo, a não ser o medo.
A perversidade tem ótimos advogados de defesa. "Você está imaginando coisas" é uma frase que já absolveu milhares de cafajestes. "Você dava sinais de que queria" já aliviou a pena de muitos ordinários. "Você era um pingo de gente, não teria como lembrar" já tentou fazer com que as vítimas parecessem loucas.
Por fim, o argumento que passa o pano definitivo: "Era comum. Agora é que a mulherada deu para encher o saco". Nossas filhas e netas fazem parte desta mulherada que não leva mais o abuso para o escuro do quarto nem chora sozinha sobre o travesseiro. As palavras ganharam novo sentido — e consequências. Hoje, para que nada disso se repita, a gente conta, sim, para todo mundo.