Vou contar a história, alguns já conhecem. Em 1º de novembro de 2000, véspera de Finados, publiquei uma coluna chamada A Morte Devagar, toda ela com parágrafos iniciando da mesma forma: “Morre lentamente quem não troca de ideia... Morre lentamente quem vira escravo do hábito... Morre lentamente quem evita uma paixão....”.
O recado era simples: nem sempre a morte nos colhe em definitivo, ela pode subtrair nossa vida em suaves prestações, à medida que colecionamos desistências. O texto foi muito compartilhado por e-mail, a principal rede social da época. Não demorou, passou a circular com novo título — “Morre lentamente” — e novo autor: Pablo Neruda.
Um texto inédito do maior poeta chileno, Nobel de Literatura? Ganhou o mundo, claro, enquanto algumas pessoas, intrigadas, me mandavam mensagens: mas não foi você que escreveu? Ainda bem que a Fundação Neruda também tirava as dúvidas de quem a consultava, mas como esclarecer a grande massa de leitores que ignorava a estatura da obra de Neruda e que, inocentemente, acreditou na mentira sem averiguar?
Tempos depois, um repórter me ligou. Queria uma declaração sobre a reviravolta que havia acontecido na Itália. Ué, o que aconteceu na Itália? Ele me contou: Clemente Mastella, ex-ministro italiano da Justiça, havia lido o meu texto no Parlamento do país, atribuindo-o a Neruda. Seu discurso ganhou notoriedade na imprensa, pois comunicava sua renúncia ao cargo, precipitando o fim do apoio do seu partido ao governo de Romano Prodi, o que provocou a também renúncia do então primeiro-ministro. Olha a confusão.
Os jornalistas italianos logo descobriram o equívoco na atribuição da autoria e tive meus 15 minutos de fama por lá. A partir desse episódio, “Morre Lentamente” ganhou ainda mais repercussão, agora com minha assinatura recuperada. Passou a ser utilizado em aberturas de palestras nos Estados Unidos, virou letra de música na França, inspirou uma exposição de fotos na Índia, ganhou traduções mundo afora. Nunca ganhei um centavo com isso, é como se fosse de domínio público. Tudo bem, nem tudo precisa virar dinheiro.
Me dei por feliz com a correção feita, com o alcance da leitura e guardei as lições. Mentiras se espalham mais rápido que a verdade. A maioria das pessoas acredita em tudo o que escuta e lê, sem checar. Um texto sem pretensões pode ganhar uma projeção inesperada, basta que algum detalhe seja manuseado.
Agora imagine o tamanho do estrago provocado pela avalanche de informações intencionalmente falsas que têm sido disparadas, de hora em hora, no WhatsApp. Por preguiça em conferir se é verdade antes de espalhar, podemos não só passar atestado de ignorantes, mas ajudar a matar o país lentamente.