Direito ao sumiço. Já escrevi dois textos com esse mesmo título. Falava sobre o direito de viajar sem ter que mandar notícias a cada cinco minutos, sobre o direito de desconectar do trabalho depois do expediente, sobre o direito de desaparecer por um tempo, ficar inacessível. Sou obsoleta, ainda exalto a liberdade como se tivesse 17 anos.
Repito o título, pela terceira vez, agora para tratar de um sumiço mais radical. O ator francês Alain Delon, que sofreu um duplo AVC em 2019, enviuvou em 2021 e completou 86 anos em novembro passado, revelou à revista Le Point que cogita a eutanásia e que autorizou o filho a organizar sua saída definitiva de cena. Enquanto escrevo, nada ainda foi efetivado.
Também conhecido como suicídio assistido, o último ato consiste em abandonar voluntariamente uma existência atormentada, com acompanhamento médico e cercando-se de seus amores para uma despedida indolor. É tão censurável assim?
Não se trata de incentivar aqui a desistência precoce, mas de respeitar o desejo de quem deu sua missão por encerrada, “...sem passar por hospitais, injeções e o resto”, como diz o ator. E o resto não é pouca coisa.
Perda da autonomia. Da independência. Da memória. Da lucidez. Qual o valor da longevidade para quem sobrevive apenas para manter suas funções vitais – comer, ir ao banheiro e dormir? Não é a duração da vida que importa, e sim sua qualidade, afirma Betty Milan em seu mais recente livro, Heresia. Eu relutaria em apoiar a antecipação da partida de uma pessoa jovem em dificuldade extrema, uma vez que ela ainda teria tempo para se beneficiar dos avanços da medicina e inaugurar uma nova forma de existir, mas a situação é diferente quando se atinge um ponto de não retorno. Sempre que algum doente terminal decide partir, é triste e chocante, como toda morte é, mas não considero covardia, egoísmo ou blasfêmia. Optar por interromper o sofrimento agudo causado pela decadência física e mental pode ser não apenas um alívio, mas também um ato de pudor.
Toda resistência é subversiva. Lutar por 10 minutos a mais de vida, mesmo em estado de dor, é uma bravura admirável. Mas respeito também aqueles que, depois de viverem bastante, resolvem descansar com a dignidade que julgam merecer, sem prorrogações.
Bélgica, Espanha, Suíça, Holanda, Luxemburgo, Canadá, Colômbia e alguns Estados norte-americanos não proíbem a prática, desde que haja o desejo expresso do paciente. O Brasil ainda trata o tema como homicídio, sem considerar as particularidades de cada caso.
Quanto mais distantes ficam os meus 17 anos, mais celebro o livre arbítrio. Delon, que seja feita a sua vontade, Deus não vai atrapalhar. Aliás, anda sumido também.