As pessoas têm reclamado da quantidade de vida que estão desperdiçando durante o isolamento social. A sensação é de que 2020 já era, foi um ano morto. Há quem inclusive faça piada dizendo que não trocará de idade, manterá a do ano passado, até que possa festejar seu aniversário de novo. É natural acreditar que a vida é o que acontece enquanto estamos ocupados. Ao cumprir inúmeras tarefas, utilizando todas as horas do dia com atividades práticas, parece que conseguimos manter a morte a distância – brincando de Deus, nosso hobby.
Mas aí vem essa crise sanitária que nos paralisa e nos joga na cara, diariamente, um número preocupante de óbitos. Manter a morte a distância não está mais relacionado com agitação, e sim com ficar paradinho dentro de casa, por mais que tanta gente não consiga compreender e tirar proveito disso.
Poderíamos ser menos obtusos se Filosofia fosse matéria escolar obrigatória, mas os alunos continuam tendo acesso apenas ao pensamento de seus ídolos, que certamente não são Aristóteles, Platão, Nietzsche ou Sêneca, que nunca gravaram uma live.
Nietzsche, por exemplo, dizia: “Aquele que não dispõe de dois terços do dia para si é um escravo”. Deveríamos trabalhar oito horas e dedicar as outras 16 ao ócio, ao lazer, ao sono, à meditação. Tão lindo e tão irreal. Até início de março, gastávamos as 16 horas restantes em congestionamentos, farmácias, mercados, cartórios, bancos, lojas, consultórios, filas. Mas o cenário já não é este. Muita gente ainda precisa ir para a rua (pessoal da saúde dando expediente diário de 14h, 16h), mas eu e tantos outros estamos em home office e finalmente dispomos de dois terços do dia para fazer as refeições com mais calma, para ler, para “desperdiçar” com aquilo que equivocadamente chamamos de fazer nada.
Filosofia em plena pandemia, sim. Temos que extrair algo bom desse período
Sêneca complementa: “Pequena é a parte da vida que vivemos. Pois todo o restante não é vida, mas somente tempo”. Ou seja: nada está mais longe da vida do que o homem superocupado, que nunca se detém, não contempla seu passado, não desfruta o presente e está sempre de mãos vazias em relação ao futuro.
Filosofia em plena pandemia, sim. Temos que extrair algo bom desse período. Antes, sobravam só uns minutinhos para o que realmente valia a pena – telefonar para os avós, preparar um suco de laranja, contar uma história para uma criança. Mudou. Podemos adicionar mais plenitude a este tempo que parece não passar. Não há pressa nem excesso de compromissos. A tarefa mais urgente é prestar atenção aos nossos sentimentos internos, que ficavam sem ser observados. Os dias andam repetitivos? Pois eles têm tudo para ser mais vívidos do que aquela agenda empanturrada que, por ora, deixou de nos atazanar.