Muitas pessoas têm nojo de baratas. Ou medo. As danadas vivem pelos cantos e podem nos surpreender a qualquer momento, desestabilizando nossa rotina e nossa paz. Uma barata no mesmo recinto é uma perturbação, nada volta ao normal até que ela seja eliminada. Quem dá cabo dela vira instantaneamente um herói.
Mas elas se reproduzem e reaparecem. Não há solução, só paliativos. Manter a casa limpa, não espalhar resto de comida, providenciar uma dedetização de vez em quando. O jeito é se contentar em mantê-las fora de visão, fazendo de conta que não existem.
É como se eu tivesse sido sequestrada por duas horas (ou ido à Ásia por duas horas, vivido um amor louco por duas horas, chegado perto da morte em duas horas). Quando as luzes se acendem e as portas se abrem, custo a levantar do assento, continuo imersa nos sustos que levei, nas emoções que senti.
Parasita, o tão comentado filme sul-coreano, é uma metáfora caricatural da nossa relação com o que não enxergamos. Uma família pobre mora num espaço insalubre que fica abaixo da linha da calçada, junto a lixeiras. Eles espiam o mundo como se por uma fresta de um bueiro. Não por acaso, nas cenas iniciais, são atingidos pelo jato de um pesticida que está desinsetizando a rua. Surge então a chance de entrarem na casa de uma família rica, e aí, um por um, se infiltram na sala, na cozinha, nos quartos, tomando conta de todo o ambiente doméstico. Até que descobrem o porão, e essas "baratas" intrusas encontram baratas ainda mais subterrâneas, que já estavam ali antes.
Há muitas maneiras de filmar a desigualdade social. Coringa investiu em um personagem dos quadrinhos, A Odisseia dos Tontos optou por um duelo quase infantil entre mocinhos e bandidos. Já Parasita tem um roteiro deliciosamente pirado que intercala o cômico e o trágico. A luta de classes nunca alcançará um happy end, mas ao menos ainda veremos outros tantos filmes usando o tema como gancho e, através dele, realizando arte de primeira categoria.
O cinema é uma lente de aumento exuberante. Seja qual for a história contada, é a nossa humanidade que está na tela, hiperdilatada. Nunca saio indiferente de uma sala de cinema. É como se eu tivesse sido sequestrada por duas horas (ou ido à Ásia por duas horas, vivido um amor louco por duas horas, chegado perto da morte em duas horas). Quando as luzes se acendem e as portas se abrem, custo a levantar do assento, continuo imersa nos sustos que levei, nas emoções que senti. É estranho voltar aos corredores iluminados do shopping e pagar o ticket do estacionamento como se nada tivesse acontecido. A vida real é que passa a ser violenta, louca, pirada. Por um tempo, transito entre duas dimensões.
Se você se envolve da mesma maneira, vai gostar: estou lançando Comigo no Cinema, uma seleção de crônicas inspiradas por filmes que vi de Almodóvar, Woody Allen, Jorge Furtado, Jim Jarmusch, Scorsese e tantos outros. Mais de 70 reflexões escritas assim que cheguei em casa, com o filme ainda agindo dentro de mim (como Parasita continua agindo). Porque quando um filme mexe conosco, ele dura mais do que duas horas.