Faz bastante tempo. Uma das mulheres mais poderosas do jornalismo brasileiro, respondendo a uma entrevista, disse que, chegada à meia-idade, já não queria ser chamada de inteligente, preferia que a considerassem gostosa. Claro que isso não foi dito em tom solene, e sim com o largo sorriso que acompanha as declarações provocativas.
“Não me chamem de inteligente e sim de gostosa.” O que essa frase contém? Autoestima: a jornalista em questão sabe que é inteligente e já não precisa desta confirmação. Vaidade: ser considerada gostosa na meia-idade faz bem para o ego. Bom humor: a frase desconstrói uma verdade estabelecida, a de que a mente é superior ao corpo. Liberdade: ainda que pareça frívola, a jornalista não abre mão de dizer o que pensa. Machismo: reforçou que ser apetitosa é um valor.
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Imagino que ela não deva ter mudado de opinião, mas hoje talvez não repetisse esta frase em voz alta. Acabaria sendo considerada uma incentivadora do assédio, se não sexual, certamente moral. As mulheres andam bastante atentas contra qualquer atitude que as deprecie e isso é fundamental para mudar a mentalidade machista reinante, mas há uma histeria no ar, ou só eu que acho?
Tenho tentado lembrar se já sofri assédio. Minha memória não é de confiança, mas até onde ela alcança, a resposta é não. Se sofri, talvez tenha desconsiderado – o que me torna cúmplice e não vítima. Mas lembro claramente de duas situações constrangedoras: quando o assédio partiu de mulheres, e não de homens. Que nome dar a isso? Machismo também? Como é que se denomina o fato de uma mulher passar a mão na outra sem autorização ou incentivo?
Mexeu com qualquer um, mexeu com todos – este deveria ser o slogan. Todos por todos, vigilantes contra abusos em geral. Entendo que o foco feminista é importante para, repito, mudar uma mentalidade antiquada que, de tão absorvida, já ninguém discute seus danos. Os homens precisam de freio, concordo. Mas quem não precisa?
Em 2003, escrevi sobre um caso que aconteceu na Noruega: um homem denunciou uma mulher que fez sexo oral nele enquanto ele estava desacordado em uma festa. Que boiola, pensaram muitos. Mas igualdade de direitos é isso. Vale para todos.
Freio para José Mayer, freio para José da Silva, freio para Maria da Silva, freio para qualquer pessoa, de qualquer gênero, que violente quem quer que seja. Já chamar de gostosa (ou gostoso) sem haver intimidade entre ambos é inadequado e grosseiro, mas não é uma ameaça. Somos suficientemente inteligentes para distinguir o que é crime e o que não é.