Minha relação com os animais se divide em antes e depois do Cachorro. Embora os muitos cães e gatos que tivemos em casa durante o tempo em que morei com minha família, sempre faltou alguma coisa – em mim, claro – para aprofundar a relação com os bichos. Era passear e alimentar com carinho e responsabilidade, mas sem aquele amor todo que eu via nos outros, aí incluídos meus pais e meus irmãos.
Hoje penso nos nossos bichos com a saudade sem remédio das perdas. O primeiro de todos, o boxer Barnaby, vulgo Babinho, praticamente um irmão caçula. O simpaticíssimo Jimmy e, esse era danado, o Fagundes, de quem eu tinha medo a ponto de não ir para o pátio sozinha. Quando meu pai foi salvar um gato que havia ousado se aproximar do prato de comida dele, o Fagundes mastigou a perna de seu dono, o único a quem ainda obedecia. Por último, a Bumba, nascida Zabumba, que meu filho ganhou de presente quando completou um ano, mas que vivia na casa dos meus pais por conta do espaço.
Nota da redação: meus parentes sempre escolheram nomes exóticos para os bichos da família.
No capítulo felinos, a pioneira foi a Samanta, gata preta cheia de personalidade, que nunca foi com a minha cara. O primeiro dos filhos dela, batizado de Éber pela minha irmã. As duas filhotes da segunda ninhada, Thelma & Louise. E muitos mais que não lembro na cronologia certa, sempre tinha um gatinho novo na casa dos meus pais.
Sempre para lá e para cá, nunca achei tempo ou mesmo vontade para adotar um bicho. Foi quando meu irmão voltou para Porto Alegre com o Cachorro. Um vira-lata da mais pura linhagem que andava pela praia do Santinho fazendo zoeira com sua turma de bad dogs, até que entrou na casa do Duda e nunca mais saiu de lá. Hoje os dois são o que se costumava chamar de a corda e a caçamba, onde um vai, o outro está junto.
O Cachorro tem um olhar tão cheio de amor que é impossível sentir por ele menos do que isso, amor. Seu programa favorito, além de trotear muitos e muitos quilômetros duas vezes por dia, é sentar de frente para os humanos, olhos nos olhos enquanto a gente faz qualquer coisa, trabalha, cozinha, limpa a casa, vê o jogo do Grêmio. Nem na estreia do Roger (glória aos deuses do futebol por ele ter voltado para casa) o Cachorro se dignou a olhar para a TV, preferiu continuar encarando sua família. Meu irmão diz que ele faz isso porque, catarinense que é, torce para o Avaí.
Foi com essa overdose de amor canino que li, para variar, uma boa notícia no jornal. A chefia de uma unidade operacional dos Correios de Porto Alegre queria expulsar as cadelas Pretinha e Branquinha, que viviam há mais de 10 anos por lá, cuidadas por funcionários e clientes. Pois dois dos funcionários ingressaram com uma ação popular na Justiça Federal para mantê-las ali. Conseguiram, desde então, duas decisões provisórias favoráveis (1º e 2º instâncias) e, no último dia 16, uma decisão de mérito.
A juíza da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, Clarides Rahmeier, deu ganho de causa aos funcionários e determinou que as cadelinhas continuem onde estão. Depois de tantos anos convivendo naquela unidade dos Correios, disse a magistrada, Pretinha e Branquinha criaram laços afetivos com os funcionários, e uma mudança poderia ser prejudicial para as duas.
Um dos argumentos da ação é o de que as cadelinhas são comunitárias, e a lei estadual n° 15.254/19 dispõe, justamente, sobre o animal comunitário – definido no texto como “aquele que estabelece com a comunidade em que vive laços de dependência e de manutenção”. Nos autos do processo, médicos veterinários indicaram que a remoção das duas, ambas com idade avançada, geraria estresse e sofrimento.
Ainda cabe recurso. Enquanto isso, os funcionários que, durante todos esses anos, se responsabilizaram pela alimentação e a saúde de Pretinha e Branquinha, continuarão sendo recebidos com festa pelas duas na chegada ao trabalho.
O amor nos olhos delas, com certeza, vale a luta.