Em um verão do passado: família apertada no carro, BR-101 a anos luz da duplicação, pai dirigindo em velocidade passível de multa por insuficiência de velocidade. Ultrapassar caminhão, jamais. Ultrapassagens todas, aliás, só passando antes pela permissão da copilota, também conhecida por mãe. Nove horas depois, a chegada ao apartamento alugado nos classificados do jornal, muito menor do que o prometido, muito mais longe do que o razoável, para os melhores 15 dias do ano.
Em um verão do passado: ao primeiro vento mais forte, o guarda-sol às cambalhotas pela areia com a família toda atrás, menos a mãe, a única com cadeira de praia exclusiva, da qual só levantava na hora de voltar para casa.
Em um verão do passado: o pai torrado no peito e nas costas porque, se algum pai do passado usou protetor solar, gostaria de conhecer esse caso raro da humanidade.
Em um verão do passado: 10 horas sob o sol, passando protetor só nos primeiros dias, porque depois a pele ficava de um jeito que parecia imune a qualquer raio ultravioleta. As rugas de hoje estão aí para desdizer essa teoria.
Em um verão do passado: o irmão adolescente que quer fazer outra carteira de identidade, e para isso precisa se livrar do RG antigo, com a foto do gorduchinho que havia sido. Só que a mãe não deixa: para quê, essa identidade ainda está nova, a foto é tão bonita.
O irmão então dá um mergulho e solta, disfarçadamente, a carteira velha no mar, quase um presente para Iemanjá. Minutos depois – o que nunca acontece –, a mãe levanta para molhar os pés e vê, na onda que vem quebrando baixinho, a carteira de identidade do filho. Iemanjá devolveu o presente.
Em um verão do passado: a criança entra na casa alugada correndo, depois das tantas horas de BR-101 ainda não duplicada. Antes que alguém possa impedir, liga o videogame 110V na tomada 220V. E torra tudo, Mario Kart, Zelda, Dragon Ball, a possibilidade de alguns minutos de calmaria nos dias que começam cedo, bem cedo, com a ralha sendo carregada até a areia e um doce balanço a caminho do mar gelado, bandeira preta.
Em um verão do passado: diferentemente de agora, chove o tempo inteiro. Duas semanas de água caindo, com breves intervalos para levar a tralha até a areia, doce balanço a caminho do mar gelado, bandeira preta. E com o videogame torrado. Quando penso nos verões passados, eles parecem todos o mesmo, as mesmas histórias, os mesmos perrengues, as mesmas chatices, as mesmas risadas. E a mesma certeza: era neles que eu queria continuar passando todos os meus verões de agora.
***
Recado do leitor. Rodolfo Manfredini esclarece que a casa da Rua Duque de Caxias, antes ocupada pelas mulheres da Mirabal, tema da coluna dos dias 5 e 6 de fevereiro, agora sedia os trabalhos de caridade dos freis da congregação salesiana Dom Bosco, entre eles o fornecimento de almoço para moradores de rua.