Alguém toca corneta aqui perto de casa em todos os finais de tarde. Deve ser em algum sinal das redondezas, uma variação dos malabares, dos meninos prateados e dos cartazes onde uma palavra, FOME, se destaca em um papelão.
Os acordes começam junto com a minha irritação.
E não é que a inadequação e a inconveniência de mais alguém tentando sobreviver deixa tudo mais triste ainda?
O repertório do corneteiro é o mais improvável possível. Indiferente aos bem-vindos códigos dos novos tempos, ele em geral inicia sua apresentação com Olha a Cabeleira do Zezé. Até os bailes de carnaval já baniram Olha a Cabeleira do Zezé, mas o corneteiro não está nem aí para a incorreção.
É aí que a minha irritação começa a passar.
Pelo titubear das notas, se é que notas titubeiam, é uma pessoa que não sabe tocar, ou não o bastante para se exibir em público. Talvez tenha aprendido lá na infância, talvez ainda seja uma criança, ou quase isso.
Não sei sequer se é homem ou mulher. Chamo de corneteiro por facilidade ou preguiça.
Depois de Olha a Cabeleira do Zezé executada em looping, o corneteiro segue ignorando o bom-tom – em todos os sentidos – e ataca de Mulata Bossa Nova. O repertório dele remonta a conceitos passados. Certo que ele não pegava naquela corneta há muito tempo e precisou se valer dela para tentar arrumar uns trocados no sinal.
Nesse ponto, minha irritação foi embora de vez.
Ele é tão ruinzinho que lembra um anúncio premiado do Exército da Salvação, de uma época em que a propaganda produzia ideias que não eram esquecidas em trinta segundos. Ou dá ou nóis toca, dizia o anúncio, homens de uniforme amarfanhado com sax e corneta fotografados de um jeito que pareciam armas. Ou dá ou ele toca, eu penso, enquanto o corneteiro segue assassinando a Mulata Bossa Nova.
Na TV, pessoas disputam restos de comida dentro de um caminhão de lixo em Fortaleza.
Gente que perdeu pai, mãe, companheiro, companheira, às vezes metade da família, desfila no pior dia da CPI da Covid.
Bem nessa hora, o corneteiro ataca de Maria Sapatão. E não é que a inadequação e a inconveniência de mais alguém tentando sobreviver deixa tudo mais triste ainda?
Agora já é noite e ele continua tocando. O corneteiro sempre deixa o mesmo número para o gran finale, Careless Whisper, uma das mais clássicas do George Michael. Quando castiga no tã-rã-rã-rã-tã-rã-rã-rã que introduz a música, já sei que logo ele vai levantar acampamento. Com um pouco de sorte, levando algum troco no chapéu.
Amanhã tem mais.
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A beleza também sobrevive. O 28º Porto Alegre Em Cena vai até dia 31 de outubro com uma programação que só uma curadoria muito valente e competente (oi, Fernando Zugno) poderia trazer nesses tempos difíceis. Com todas as atrações gratuitas, dividido em digital e presencial, o Em Cena vai juntar artes cênicas e visuais de presente para o público. Já viu a mostra Jardim Guarani, de Xadalu Tupã Jekupé, no Foyer do Theatro São Pedro? E as cobras infláveis de Jaider Esbell no Espelho d’Água da Redenção? É preciso retirar senha para as atrações presenciais – entre elas Altamira 2042, Metaverse e Fantasmagoria nº 2. O palco aqui é pequeno para uma programação tão rica – que está toda aqui: portoalegreemcena.com.
Clap clap, clap, clap