Um dia você entra em casa e dá de cara com um adulto sentado na sala. Sentado, não: esparramado no sofá. Jogando videogame enquanto assiste à Eurocopa, mexe no computador e manda uma mensagem pelo celular, tudo ao mesmo tempo.
Você se assusta e sai procurando pela casa o menininho que mora com você, o seu filho pequeno. Onde, diabos, a criança se meteu? Foi ele quem deixou o adulto entrar? Pior ainda: o que aquele adulto fez com o seu filho?
Você tenta atrair a atenção do desconhecido para tomar satisfações, e fracassa diante da quantidade de telas abertas diante dele. Já vai chamar a polícia quando percebe, no jeitão do adulto, uma certa semelhança com alguém. E só então cai a ficha – ou chega o Whats, para usar uma expressão mais atual.
O adulto é o seu filho.
O seu bebê. O seu pitoco. O seu gurizinho que, agora mesmo, batia pé e abria a boca quando você combinava uma rara saída na semana. Passou o dia fora e já vai me deixar sozinho de novo?
Nas vezes em que os argumentos da sua mãe venceram (tu sabe que ele fica bem comigo – daqui a pouco nem lembra – vai viver, criatura), você foi e passou a noite se sentindo culpada, um olho nas amigas e outro no celular, só esperando uma desculpa para ligar e ouvir que sim, a criança estava inconsolável, esperneando pela mãe.
Na verdade, ele estava vendo O Clone com a avó, ou comendo o miojo proibidão nos outros dias, ou jogando o Atari herdado do tio. Estava, inclusive, melhor do que você, que a essa altura contava os minutos para buscar seu pequeno, as amigas com cara de quem te viu, quem te vê. Nem de longe lembra aquela sirigaita que, não faz muito, descia até o chão.
À medida que ele crescia, vocês ficaram ainda mais ligados. Fazer o que se a criança era mesmo uma ótima companhia para ir ao cinema, ao shopping, para andar de bicicleta e rir das bobagens que vocês inventavam – algumas delas tão sem graça que irritavam quem estava por perto? Depois, quando ele descobriu o prazer de sair de noite, coube a você a tarefa de ir buscá-lo nas madrugadas. Não que fosse fácil, ainda mais no inverno. Os pais que terceirizam essa tarefa perdem a chance de se divertir com as histórias meio secretas e os comentários mais ou menos velados que os amigos e as amigas vão fazendo, às gargalhadas, enquanto você deixa um por um em casa. Desânimo mesmo, só quando ele pedia para dar uma carona para o Fulano, que morava um pouco mais longe. Em Gravataí.
Se você chegasse em casa e encontrasse um crianção ranhento, alguma coisa teria dado muito errado nessa história
Você volta para o presente, puxa o celular, senta na poltrona e finge procurar alguma coisa enquanto tenta entender como aquela transformação aconteceu tão rápido. Se você deixou uma criança quando saiu de casa, que tipo de viagem no tempo a transformou em um adulto quase desconhecido? Só então ele percebe a sua presença, dá um oi protocolar e volta para suas telas e vidas. Para uma intimidade que já não lhe pertence.
Ainda bem. Se você chegasse em casa e encontrasse um crianção ranhento, alguma coisa teria dado muito errado nessa história. É nisso que você está pensando quando ele faz um comentário:
— Sabe o menino Neymar? A internet, de zoeira, agora fala adulto Neymar.
Você ri e resolve resgatar a criança perdida, pergunta se o seu adulto quer jantar um miojo hoje. E ele: Deus me livre, prefiro um açaí.
O tempo é o tempo é o tempo.