Lançada há pouco na Netflix, Faz de Conta que Nova York é Uma Cidade é uma série documental de sete episódios de apenas meia hora, às vezes até um pouco menos, que vem conseguindo um feito raro em dias – lá vem chavão – polarizados: não há quem não goste.
Seria possível dizer que é um programa despretensioso se Martin Scorsese não estivesse diante das câmeras em carne e sobrancelhas. Não que seja ele a estrela. Scorsese é apenas a escada para o (mau) humor, as frases e as tiradas de Fran Lebowitz – por quem, fica evidente, o diretor é fascinado.
Para quem, como eu, nunca tinha ouvido falar da senhora Lebowitz, uma breve ficha. Prestes a completar 70 anos, e morando em Nova York desde os anos 1970, ela é uma cronista com apenas três livros publicados – e o terceiro reúne os melhores momentos dos dois primeiros.
Seria outro chavão dizer que Fran é uma versão mais despachada de Woody Allen. Que, aliás, foi quem primeiro a convidou para colaborar em uma revista, quando ela mal havia chegado de Nova Jersey. Fran é judia, se veste do mesmo jeito desde jovem e tem opinião sobre tudo. Tanto que é dando opinião que ela ganha a vida, em palestras e conferências pelos Estados Unidos.
Quer dizer: era assim que Fran ganhava a vida. Com a pandemia, a fonte de renda desapareceu, e as dívidas se acumulam. Ela comprou um apartamento maior do que precisaria e mais caro do que deveria porque, na alta, a gente nunca pensa que a sorte pode mudar. Agora dorme com o fantasma da hipoteca. Fran é desse tipo, uma pessoa que existe. Mas com uma combinação de inteligência e espírito que deveria fazer muito comediante que se acha engraçado chorar no cantinho.
Durante os sete episódios, Fran conta passagens de sua vida e dá pitacos sobre todo e qualquer aspecto da cidade, uma estação de metrô que ficou seis meses fechada para receber a instalação artística de um cachorrinho, outra que foi interditada por causa de um mau cheiro que sempre esteve lá. Eu contando não parece engraçado, mas pode assistir à série sem medo, porque é. Fran não tem celular e se diz a única pessoa em Nova York que caminha olhando para a frente, e não para a tela. Isso inclui ciclistas e pais e mães com carrinhos de bebê.
Contra o tédio da pandemia, Fran Lebowitz em pequenas doses de meia hora que só têm uma contraindicação: terminam rápido demais
Há quem ache que a série não precisaria se passar em Nova York, que o que importa mesmo é a Fran. Permito-me discordar. Finja que Porto Alegre é uma cidade, por exemplo, não daria um quilo. A gente acabaria apontando mais os problemas que as contradições engraçadas.
Fran precisa de Nova York para contracenar com ela. A cidade é sua escada, coadjuvante e antagonista. Onde mais a Fran poderia observar que aquele é o único lugar do mundo que coloca placas com textos no chão – não lembretes como “mind the gap”, mas poemas inteiros e recados de outras épocas, que ninguém vai ver por estarem todos grudados no celular? E ainda tem a incrível maquete de Nova York no Queens Museum, as cenas na Broadway e no metrô, a Biblioteca Pública da 5ª Avenida. Sou colonizada e coxa nesse caso, fiquei gostando ainda mais de Nova York depois da Fran.
E sobre Martin Scorsese? Ele conheceu Fran Lebowitz ainda nos anos 1980, em uma festa. Fran adora festas, diz que sua obra é tão pequena justamente por conta disso. Marty, como Fran chama, deve ter passado todos esses anos se divertindo com as tiradas e com o humor azedo da amiga. Agora se diverte diante das câmeras, rindo como qualquer um de nós quando a Fran larga suas máximas.
Contra o tédio da pandemia, Fran Lebowitz em pequenas doses de meia hora que só têm uma contraindicação: terminam rápido demais.