Lembra do Sofrenildo, personagem do cartunista Sampaulo que foi publicado por mais de 30 anos, primeiro nas páginas do Correio do Povo, depois na Zero Hora? Mesmo quando parecia que ia ser sucesso, tudo dava errado para o coitado. Na série Sofrenildo vai à praia, por exemplo, até tubarão podia aparecer no mar de Tramandaí. Pois quem não tem um dia de Sofrenildo na vida?
Eu, que evito pensar, e até falar, na palavra azar (olha a superstição aí), acabo de viver o meu com todas as glórias. Se é que se pode chamar assim. Sempre é bom deixar claro: diante de tantos problemas graves, esses aqui são praticamente uma anedota. Por isso a comparação com o saudoso Sofrenildo.
Começou quando o avião que deveria sair às 23h30min de Porto Alegre para o Rio de Janeiro atrasou muito por conta da chuva que maltratou o Sudeste há poucas semanas. Já eram quase 3h quando ele enfim pousou no Galeão. Quer dizer, antes disso arremeteu e ficou voando entre nuvens e raios por minutos que não passavam. Já tinha gente encomendando a alma aos gritos, o que acordou os bebês que dormiam e deu o tom da nossa, enfim, chegada.
Eu, que evito pensar, e até falar, na palavra azar (olha a superstição aí), acabo de viver o meu com todas as glórias. Se é que se pode chamar assim. Sempre é bom deixar claro: diante de tantos problemas graves, esses aqui são praticamente uma anedota.
Só que, com o atraso, a pessoa que deveria entregar as chaves do meu apartamento recém-alugado deixou um recado. Sem notícias, tinha desistido de esperar. O hotel do aeroporto, caro e ruim, estava lotado. Chovia. Muito. Entre pegar um Uber e procurar onde ficar na noite molhada, decidi esperar pela manhã no Galeão mesmo, dividindo os bancos com uma multidão tresnoitada.
O dia seguinte passei arrastando as malas e a carcaça moída no trabalho. Com tanta coisa para carregar, meu celular caiu e espatifou do meio para baixo, de um jeito que eu não podia digitar dois dos números que desbloqueavam a tela. Também não podia atender. Sem entrar no celular, não conseguia falar com a pessoa que deveria me entregar a chave. Não sabia o número, não lembrava do endereço. Muitos navegantes se perderam para sempre porque a tempestade encobriu as estrelas, ou porque a bússola foi levada pelo mar. Hoje em dia a gente some do mapa se o celular der crepe. Até porque a posição das estrelas e a bússola agora existem em forma de aplicativo.
Um casal de amigos, Olga e Daniel, ofereceu o quarto de hóspedes de seu apartamento no Leme. Aceitei no ato. Urgia deixar as malas e consertar o telefone. E havia o banho, questão de saúde pública. Combinamos que a chave ficaria com o porteiro, era só subir. Quando a gente diz que quem tem amigos, tem o mundo, ainda é pouco.
Sabe o nirvana? Foi minha sensação ao abrir a porta do apartamento. Bem verdade que o gato da Olga não concordou muito, miando desesperado enquanto eu arrastava as malas até o quarto. Pelo menos não avançou em mim. Já era noite, a chuva tinha parado, uma brisa entrava pela janela. Deitei um segundinho só para aproveitar o momento. E apaguei.
Acordei pelas 5h e pouco, o gato miando desesperado. A casa continuava vazia. Algo estava errado. Desci e o senhor da portaria selou a tragédia: os dois bateram, bateram, bateram, mas a senhora não acordou. Ligaram, ligaram, ligaram, e a senhora não atendeu. É que a sua chave ficou na fechadura e a chave deles não virou. Dona Olga estava muito cansada, resolveu dormir na casa de uma amiga. Em Niterói. Pediu para a senhora alimentar a gatinha, a bichinha deve estar faminta.
À medida em que ele falava, eu me dobrava e dobrava, como se estivesse levando sucessivas facadas. Distância Leme-Niterói: mais ou menos 40 quilômetros. O tempo que leva, isso vai depender do trânsito.
A história termina com a minha fuga, malas e celular quebrado a reboque. Não tive cara de esperar pela volta da Olga e do Daniel. Nem sei se eles ainda são meus amigos. Antes deixei comida e água para o animalzinho - que não era um gato. Era uma fêmea, a Henriqueta. Apenas mais um engano em um dia a ser esquecido. Mas como esquecer um dia desses?
Olga e Daniel, no dia do Juízo Final, me perdoem.
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Para conhecer ou matar a saudade do Sofrenildo, toda o acervo de Sampaulo, organizado pela viúva Eneida e pela sobrinha Maria Lucia, está disponível para consulta no Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUCRS, no sétimo andar da Biblioteca Central José Otão. Maria Lucia também mantém o blog sampaulocartunista.blogspot.com.