É um fato difícil de negar: está na moda ser burro. Pobres dos burros, tão simpáticos, historicamente associados à falta de luzes dos humanos. A má fama dos coitados, também conhecidos por asnos, teria origem ainda na Grécia antiga, conta Osvaldo Ceschin, professor da USP, em matéria da revista Superinteressante. Em uma das fábulas de Esopo, o burro veste uma pele de leão e assusta as pessoas até ser desmascarado pela raposa - esta, sinônimo de esperteza ao longo dos tempos. E nem sempre no bom sentido. As histórias com o burro no papel de burro foram popularizadas por La Fontaine no século 17, acabando de vez com qualquer possibilidade do bicho se reabilitar.
Na semana do Camões, um atestado de burrice ou - mais justo - um diploma de ignorante. Cada um com o seu prêmio.
De qualquer jeito, quando se diz que "fulano é burro", parece que vai aí alguma ingenuidade. O burro causa pena. Alguns colegas eram chamados de burros, guris e gurias que, com certeza, tinham déficit de atenção ou outra dificuldade de aprendizagem sequer considerada nos anos selvagens das minhas infância e adolescência. Nunca me dignei a ajudar um dos burros da aula, fiz como todos os outros que enfrentaram a alfabetização sem maiores problemas, ignorando os que sofriam para juntar as letras e mal conseguiam somar. Nem se falava em populares e excluídos, mas o conceito, intuitivo, era esse. Não pegava bem andar com os burros da aula. Bem triste.
Voltando ao incentivo à burrice, talvez a coisa seja mais séria. Foi a ignorância que, de repente, virou caso para orgulho. A ignorância, que de ingênua não tem nada, uma bomba a causar danos que podem afetar gerações. A notícia falsa, por vezes uma fofoca grosseira passada adiante no grupo de WhatsApp da família, desbancou os jornais. Certo que, omitindo ou selecionando informações, muitos veículos contribuíram para a balbúrdia de agora. Nada que um leitor com senso crítico não pudesse identificar. Mas a isso preferiu-se espalhar que toda a imprensa mente. O tio Amaral e a vó Eva - auxiliada pela cuidadora Doralice porque já não consegue ler as letrinhas miúdas do celular - nunca mais acreditarão em outra versão que não a do grupo da família.
Os atuais exemplos de ignorância são muitos, mas fico com um só. A demonização de Chico Buarque é uma das provas de que a ignorância está vencendo o bom senso. Por suas posições políticas, o Chico hoje é hostilizado nas ruas do Rio de Janeiro e em aeroportos por aí. Engraçado é que, não faz muito, não tinha para ninguém. A música e os livros de Chico Buarque eram enaltecidos. Maridos temiam pelo destino de seus casamentos se as esposas topassem com o Chico. E muitas esposas temiam também. Pelo menos dois cidadãos que conheço já declararam - em público - que, pelo Chico, mas única e exclusivamente pelo Chico, trocariam de lado. Os mesmos que agora xingam o compositor de versos como:
Não se afobe, não, que nada é pra já
O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante, milênios
Milênios, no ar
Só que um dia a onça bebe água. Quem venceu o Prêmio Camões, principal troféu literário da língua portuguesa? Chico Buarque, eleito por unanimidade pelo conjunto da obra. Recebeu a honraria e mais a bagatela de cem mil euros. Enquanto isso, aquela famosa cantora de sertanejo universitário declarava na televisão haver cometido a atrocidade "juntos e shallow now" por ser o português "uma língua pouco melódica". Incultas e belas, a língua e a cantora, diria Bilac. Na semana do Camões, um atestado de burrice ou - mais justo - um diploma de ignorante. Cada um com o seu prêmio.