Criado como um convite à reflexão, o projeto Falas volta à tela da TV Globo em 2023 em um novo formato. Os já conhecidos Falas Femininas, Falas da Terra, Falas de Orgulho, Falas da Vida e Falas Negras apresentam, neste ano, tramas ficcionais de suspense, como parte da antologia Histórias Impossíveis. Os cinco episódios serão exibidos ao longo do ano e abordarão temas relevantes e atuais, como questões sociais, de gênero e raciais, a partir de medos e de diferentes perspectivas de mulheres. O primeiro, Falas Femininas - Histórias Impossíveis, irá ao ar após o BBB 23 nesta segunda-feira (6), na semana do Dia Internacional da Mulher.
O episódio, intitulado Mancha, narra a história de duas mulheres. A empregada doméstica Mayara (Luellem de Castro), uma mulher negra, está em seu último dia de trabalho. Ela, que passou no vestibular e decidiu investir em seus estudos em tempo integral, acredita que Laura (Isabel Teixeira), uma mulher branca, de classe média e mãe solo de uma bebê, é uma patroa "diferente", e há uma certa afetividade entre elas. Até que Laura, afetada pela notícia, pela maternidade e pela solidão, pede que Mayara desista dos estudos para continuar em sua casa. Entretanto, a Mayara quer viver seus sonhos. Mas uma queda da janela, enquanto limpava uma mancha a pedido da patroa, pode interromper esse plano.
Uma das diretoras do projeto, Everlane Moraes ressalta que Mancha fala, de maneira transversal, sobre classe, gênero e raça, por meio das histórias dessas duas mulheres, que são muito distintas. Elas têm uma relação específica, de patroa e empregada, na qual existe afeto, mas falta limite. Assim, o público acompanhará o desencontro desses dois corpos que coabitam o mesmo espaço de maneira complexa.
— A gente vai chegar ao final do episódio refletindo muito sobre o que é ser mulher, de que mulher a gente está falando, qual mulher a gente está homenageando. Que feminismo é esse, branco, que não contempla a luta das mulheres negras? — questiona a diretora.
Portanto, além de maternidade e políticas públicas, o primeiro episódio, que também tem direção de Luísa Lima, diretora artística da série, fala sobre feminismo.
— E também sobre o feminismo negro, os lugares nos quais as mulheres negras estão e que têm de caminhar muitos passos até chegar ao mesmo patamar social que as mulheres brancas estão — explica Everlane.
Repaginação
Os outros episódios do projeto trazem tanto temáticas quanto elenco diferentes. Eles serão exibidos em datas que remetem às causas e lutas sociais abordadas nas obras: Dia dos Povos Indígenas (Falas da Terra, em abril), Dia do Orgulho LGBT+ (Falas de Orgulho, em junho), Dia Nacional das Pessoas Idosas (Falas da Vida, em outubro) e Dia da Consciência Negra (Falas Negras, em novembro).
Por trás da criação, um trio estreia na autoria de um projeto para a Globo: Renata Martins, Grace Passô e Jaqueline Souza, que assinam os roteiros ao lado de um time de colaboradoras que varia a cada episódio. O grupo de direção, formado em sua maioria por mulheres, também garante a diversidade atrás das câmeras.
De acordo com Jaqueline, a antologia Histórias Impossíveis, voltada para a ficção, foi pensada como uma série. Porém, durante o desenvolvimento, já que possuía uma natureza que buscava retratar mulheres diversas e temas que tratam de questões sociais do Brasil, decidiu-se uni-la ao Falas para trazer um novo olhar para o projeto.
Os programas abordam diferentes tópicos: herança escravista, maternidade, precarização do trabalho, etarismo, violência contra a mulher, especulação imobiliária, crise ambiental e representações na mídia. Além disso, falam sobre temas como futuro, identidade, amor, ancestralidade, cura e revolta.
Para isso, recorrem a personagens LGBT+, negras, indígenas, brancas e de idades diversas. O público conhecerá protagonistas femininas de forte identificação, por meio de uma linguagem realista, com a exposição de traumas, preconceitos e violências que, muitas vezes, são mascarados no cotidiano.
De acordo com Jaqueline, o feminino estará presente em todos os episódios, assim como o medo, mas com pesos diferentes — alguns serão mais leves, outros mais voltados a gêneros como terror, ou, ainda, fantasia.
A criadora e roteirista destaca que o projeto envolve muitos desafios:
— Estamos falando de personagens e subjetividades que a gente raramente vê retratadas. Tem um exercício nosso que é procurar moldar novos imaginários na televisão, entendendo como fazer isso com essas personagens de uma forma que elas sejam complexas, que as pessoas se relacionem com elas.
Outra dificuldade evidenciada por Jaqueline é pensar como levar a natureza diversa ao longo de todo o processo — uma perspectiva que o projeto propõe e que está sendo alcançada, além de ser um diferencial.
— São histórias que nunca se importaram em contar, e as câmeras nunca foram apontadas — acrescenta.
Para Grace, uma das criadoras, o desafio tem a ver com o tempo de transformações sociais profundas que vivemos: pensar uma ficção televisiva que reconheça essas transformações e, ao mesmo tempo, aponte caminhos para uma parte da sociedade que está reconfigurando sua relação com padrões de opressão.
Sonhando grande, como admite, Jaqueline espera alcançar uma mudança no mundo por meio do projeto. Ao ser mais realista, projeta:
— Tem um potencial muito grande de causar discussões e reflexões na sociedade brasileira que acho que, poucas vezes, fomos confrontados a fazer coletivamente. Como se fosse um grande processo de terapia, e falar: “e aí, e agora, o que a gente faz?”. É meio que um convite para isso mesmo, e espero que isso aconteça, que as pessoas assistam, fiquem impactadas, pensem e conversem com familiares, colegas, e repensem a partir de onde elas estão se relacionando umas com as outras.