Um menino é abandonado na frente de um mosteiro, cresce sendo criado pelos freis e padres do local, ao passo em que sonha com os pais biológicos. A história de Amor Perfeito, a nova novela das 18h da Globo, pode parecer familiar. E de fato é. O mote da trama que ganha a TV a partir desta segunda-feira (20) é inspirada no clássico Marcelino Pão e Vinho (1950), do escritor espanhol José María Sánchez Silva, que já virou filme e desenho animado.
A história, porém, é uma trama única, linear, diferente do formato de um folhetim, que é caracterizado por vários núcleos e subtramas. O desafio do trio de autores Duca Rachid, Júlio Fischer e Elísio Lopes Jr. foi construir uma narrativa mais complexa a partir desse mote clássico, responsável por marcar a infância de muitas crianças dos anos 1950 e 1960, inclusive a deles.
— A primeira vez que eu fui ao cinema foi com a minha avó, uma imigrante portuguesa, analfabeta, que nunca tinha ido ao cinema também. Não era um hábito dela, mas ela foi para assistir Marcelino Pão e Vinho e me levou. Eu tenho uma relação muito afetiva com essa história. Devia ter uns seis ou sete anos de idade e foi muito marcante para mim — lembra a autora Duca Rachid.
O folhetim apresenta aos espectadores, então, o seu Marcelino, interpretado pelo ator mirim Levi Asaf. Diferentemente do personagem de Sánchez, o protagonista de Amor Perfeito não foi entregue aos cuidados dos religiosos por conta da morte dos pais. Ele tem pais biológicos vivos, mas não os conhece. São Marê, vivida por Camila Queiroz, e o médico Orlando, interpretado por Diogo Almeida, que vive seu primeiro protagonista.
A personagem de Camila Queiroz é acusada injustamente de matar o pai, o empresário Leonel Rubião (Paulo Gorgulho), graças a uma armação da madrasta Gilda (Mariana Ximenes). A vilã tem a ajuda do golpista Gaspar (Thiago Lacerda), que era noivo de Marê e não suporta o fato de ela ter se apaixonado por Orlando. A armação da dupla acaba separando a mocinha de seu amado e ocasionando também a prisão dela.
É lá que a mocinha descobre que está esperando um filho de Orlando, com quem já não tem mais contato. Também é lá que Marê dá à luz Marcelino. Minutos após o parto, temendo que Gilda tome a guarda da criança, ela entrega o bebê para adoção, sem saber para onde ele será levado. O maior sonho da protagonista é um dia reencontrar o filho, conforme a intérprete Camila Queiroz.
— A Marê tem uma gravidez inesperada e nos anos 1930. Imagina só, naquela época, uma mulher engravidar de um homem que não é o seu marido. E aí ela vive essa gravidez dentro da cadeia, vítima de uma prisão injusta, sem o pai, sem uma pessoa de confiança... Ela vai criando um laço com esse filho que acaba levado logo no parto. Tem um cordão umbilical dos dois que nunca foi rompido e que se torna a maior força dela. O que ela mais quer na vida é reencontrar esse filho — explica a atriz.
Diversidade
Enquanto isso, Marcelino cresce junto aos religiosos da Irmandade dos Clérigos de São Jacinto, local que é emblemático para a trama. Trata-se de uma casa de acolhimento que reúne freis e padres desgarrados, pertencentes às mais diferentes ordens religiosas e de gerações distintas, que ali encontram abrigo e acabam por construir uma espécie de família cercada pelo amor fraterno e pela diversidade.
O núcleo dos religiosos também é diverso e marcado por atores renomados da dramaturgia. Os clérigos de São Jacinto são interpretados por nomes como Tonico Pereira, Tony Tornado, Babu Santana e Chico Pelúcio, conhecido pelo trabalho no Grupo Galpão, uma das mais renomadas companhias teatrais brasileiras. Vivendo o seu primeiro personagem em novela após algumas participações em séries da Globo, Pelúcio destaca a importância do núcleo da Irmandade para a mensagem que Amor Perfeito almeja passar.
— Entre as funções fundamentais desse núcleo, a primeira é desmistificar o formato de família, que sempre foi muito opressor. Estamos em um momento em que várias formas de família existem. O Marcelino tem uma família com o padre e com os freis. O amor que está ali é um amor paterno, mas não biológico — diz.
Nesse sentido, a novela cumpre outro importante papel ao reunir um número grande de atores e atrizes negros em cena. E fugindo do que, infelizmente, ainda é usual na dramaturgia, o arco dos personagens vividos por eles não é obrigatoriamente relacionado a experiências de racismo. Ou seja, os personagens negros de Amor Perfeito não existem como um motivo para a novela discutir o preconceito racial — embora a trama também esteja disposta a debatê-lo.
Os negros e negras de Amor Perfeito frequentam a alta sociedade e ocupam cargos geralmente associados à branquitude, como o protagonista Orlando, que é médico. Tudo isso é mostrado de forma natural na trama, sem nenhum tipo de explicação à presença dos personagens em tais espaços.
— A partir do momento em que fomos fazendo pesquisas para a novela, fomos descobrindo coisas incríveis. Descobrimos uma elite negra que sempre existiu no Brasil e foi apagada pela narrativa hegemônica do Sul e do Sudeste, mas que a gente decidiu mostrar na novela — conta Duca Rachid, uma das autoras. — Vamos falar de racismo, mas os personagens negros não estão lá para falar de racismo, eles estão vivendo a vida deles — garante.
No entendimento do trio por trás da história de Amor Perfeito, já passou da hora de a dramaturgia escalar atores e atrizes negros para qualquer tipo de papel, assim como há décadas vem sendo feito com os profissionais brancos. É mais um ponto positivo da nova novela das seis, que apesar de se passar nos anos 1930 e trazer para a tela uma trama deliciosamente folhetinesca, mostra-se atenta e sensível às questões contemporâneas.