Pioneira no jornalismo brasileiro, Gloria Maria, que morreu nesta quinta-feira (2) em decorrência de um câncer, sempre foi uma das maiores referências na área. Tamanha é a inspiração resultante das revoluções que levou à televisão que, quando um grupo de jornalistas negras que residem em São Paulo teve a ideia de criar uma rede de apoio e conexão buscando um fortalecimento, elas imediatamente pensaram na apresentadora na hora de nomear o coletivo.
O Herdeiras de Gloria Maria é composto por 49 mulheres, entre repórteres, apresentadoras, editoras e produtoras. O grupo foi criado para que elas pudessem trocar experiências e encontrar acolhimento e diversão fora das redações.
— O nome surgiu como uma forma de homenagem, porque todas nós fomos inspiradas pela Gloria Maria quando decidimos ser jornalistas. Muitas vêm dessa geração em que ela era a única na TV. É uma homenagem dizendo: depois de Gloria, vieram tantas, e somos algumas delas — esclarece a paulistana Letícia Vidica, 38 anos, gerente de conteúdo da CNN Brasil e uma das organizadoras do grupo ao lado de Cris Guterres.
O grupo teve início em junho de 2022 por um aplicativo de mensagens e, desde então, a interação é frequente. Para participar, é preciso receber um convite. Todos os meses, as jornalistas realizam um encontro presencial para manter a conexão. Do Herdeiras de Gloria Maria, nasceram grandes amizades, além de oportunidades de mudança de emprego e pessoais.
Mesmo não se tratando de reuniões nem de um movimento, o objetivo também é dividir as dores e as delícias enfrentadas por colegas em vivências exclusivas de mulheres negras — como o racismo na profissão, que pode ser abordado em um lugar seguro.
— A gente viu que, às vezes, a gente se sente um pouco só nas nossas redações, de olhar para o lado e ver que não somos tantas, ou, em alguns casos, únicas, e poder saber que existem mais de nós por aí — explica Letícia sobre o grupo, que é formado por mulheres de diferentes gerações, dos 20 até quase 50 anos.
Apesar de servir de fonte de inspiração para essas mulheres, Gloria Maria não soube da existência do grupo antes de partir. Letícia chegou a enviar uma mensagem para a jornalista no Instagram contando sobre a iniciativa, mas não sabe se ela chegou até Gloria.
A gerente de conteúdo chegou a encontrar Gloria Maria brevemente em duas ocasiões enquanto trabalhava como produtora do Jornal Nacional. Uma delas, guarda na memória: em uma festa, Gloria se interessou pela colega de profissão, e elas tiraram uma foto juntas.
— Significa muito, porque ela não falava tanto assim sobre as questões raciais e de diversidade, porque ela sempre foi a própria representatividade. Acho que ela ter chegado aonde chegou é o maior dos ativismos, a ocupação. Ela estava ali abrindo caminho para tanta gente — afirma.
Uma das Herdeiras de Gloria Maria, a gaúcha Carol Anchieta, 42, que também é mestre em Design e curadora de arte, concorda que Gloria Maria trouxe um novo lugar de atuação como mulher negra, enfrentando o racismo de maneiras que hoje são "quase inimagináveis", por ter ocupado um lugar único.
— Ela travou uma luta que muitos de nós nunca vão saber como foi. E, ainda hoje, quando temos nosso encontro, sempre alguém chora, tem alguns em que todas choram. Porque a gente passa ainda em 2023 o que ela deve ter enfrentado sozinha nos anos 1970, 1980. A gente chora por ela, não só pela profissional maravilhosa que ela foi, mas a gente ainda chora pelas mesmas dores que ela sentia, e isso não pode mais acontecer — destaca Carol.
Contudo, acrescenta que a representação social vai além das mulheres negras:
— Ela tem um lugar de inspiração para a negritude brasileira, de potência e por manter as características dela em um ambiente ainda muito embranquecido. Mas ela é uma inspiração para a sociedade brasileira, que ainda vê a pessoa negra como o outro. E é muito genuíno ver a lembrança do lugar dela como jornalista.
O legado
Gloria Maria fez história na televisão. Ela entrou na Globo em 1970 e participou de coberturas históricas, entrevistou astros internacionais e apresentou diversos países aos telespectadores. Em suas viagens, viveu aventuras que entraram para a história do jornalismo televisivo no país. Em julho de 1977, ela foi a primeira repórter a fazer uma entrada ao vivo em cores na televisão brasileira.
— Mas sob a óptica racial, o maior legado é ter concretizado o sonho de pessoas que ela jamais imaginou, como eu e todas as meninas do grupo, porque a gente só pôde acreditar que era possível ser jornalista quando a gente viu alguém com a mesma pele que a gente — conta Letícia.
Para a organizadora do grupo, tão importante quanto o legado de representatividade que Gloria deixa é o ensinamento de que a competência e profissionalismo vão muito além da cor da pele.
— É para isso que a gente está batalhando, a gente não quer ser eternamente a jornalista preta, a gente quer ser a jornalista — pontua.
Carol reforça ainda que a lembrança de Gloria pelo lugar único de negritude que ocupou também deve gerar reflexão.
— É momento de celebrá-la, mas ao mesmo tempo de voltar o olhar para dentro dos veículos e entender que essas presenças não podem mais ser únicas — afirma.
Produção: Jovana Dullius