Aos 80 anos e dono de personagens inesquecíveis como Han Solo, Indiana Jones e Deckard, Harrison Ford bem que poderia estar descansando em sua fazenda no Wyoming. A verdade, porém, é que ele anda tão ocupado quanto sempre. Passou oito meses filmando Indiana Jones e o Chamado do Destino, a quinta aventura do arqueólogo aventureiro, dirigida por James Mangold e com lançamento previsto para junho. Fez sua estreia como personagem fixo de uma série de televisão em 1923, prequela de Yellowstone, com Helen Mirren — no Brasil a partir do dia 5 de fevereiro, no Paramount+. E estrela Falando a Real, sua primeira série de comédia, que chegou à Apple TV+ na última sexta (27), com seus dois primeiros episódios. Os outros oito estreiam, semanalmente, às sextas-feiras.
— É muito inspirador vê-lo, com essa idade, desafiando-se todos os dias — disse em entrevista ao Estadão o produtor Bill Lawrence, conhecido por ter desenvolvido Ted Lasso com Jason Sudeikis, Brendan Hunt e Joe Kelly. — Ele me ligou um tempo atrás para dizer que ia fazer uma produção da Marvel (o novo filme do Capitão América). E eu falei: "Harrison, você já viu esses filmes? O que você está fazendo?".
Mas o que Ford teria visto em Falando a Real? A comédia vem com pedigree. É uma criação de Lawrence, Brett Goldstein (ganhador de dois Emmys por sua interpretação de Roy Kent em Ted Lasso) e Jason Segel (ator de How I Met Your Mother). Segel é Jimmy Laird, um psiquiatra com dificuldades de lidar com a perda da mulher. Ele negligencia sua filha, a adolescente Alice (Lukita Maxwell), se envolve com mulheres e abusa do álcool. Laird trabalha na clínica de Paul Rhoades (Ford), onde é colega de Gaby Evans (Jessica Williams). Quando Jimmy precisa tratar de Sean (Luke Tennie), um ex-soldado que sofre de estresse pós-traumático, decide empregar métodos pouco ortodoxos, tentando se curar enquanto ajuda os outros. Christa Miller faz Liz, a vizinha intrometida de Jimmy e Alice, que acaba se tornando uma espécie de mãe adotiva para a jovem.
Como era de se esperar, Falando a Real compartilha certo DNA com Ted Lasso, na mistura de comédia com o drama — não é raro que o técnico de futebol e sua turma façam com que o espectador ria e chore ao mesmo tempo.
— Na minha carreira toda, eu fiz comédia com subtons dramáticos — contou Lawrence, admitindo ter sido muito difícil negociar a produção de Scrubs, que ficou no ar entre 2001 e 2010. — As séries cômicas de então eram Friends, Seinfeld.
Espírito do tempo
Não foi muito diferente com Ted Lasso. Lawrence e Sudeikis tentaram vender a ideia para diversas companhias, e a única que comprou foi a Apple TV+. Mas o sucesso de Ted Lasso certamente facilitou a existência de Falando a Real.
— Eu acho que está no zeitgeist (espírito do tempo) agora, porque as pessoas estão lidando com certas coisas e estão abertas à ideia. Dez anos atrás, eu não conseguiria ter saído por aí dizendo que era uma comédia sobre um cara que ficou viúvo e que é um péssimo pai.
Para Goldstein, todos sofrem luto, perda e trauma.
— E minha experiência ao observar como as pessoas lidam com isso é que sempre há humor, leveza e amor. Há os lados positivos na dor. E para mim isso é interessante de explorar, seja dramática ou comicamente.
Ao longo desses últimos anos, essa abordagem parece especialmente relevante, na opinião de Jason Segel:
— Nós vivemos um período de luto permanente por um bom tempo e não só por causa da pandemia, mas pela perda de um sentido de normalidade, porque muitas coisas ficaram bem estranhas nos últimos tempos.
E ele vai adiante nessa definição:
— Todos estamos sofrendo o luto da falta de segurança, de bem-estar. É uma sensação de perda muito genuína. E acho que Falando a Real parte do princípio de que ninguém realmente está bem no momento. Essa é uma ótima maneira de estabelecer uma conexão com o espectador.
Personagens masculinos
Outro ponto em comum com Ted Lasso é que Falando a Real traz personagens masculinos que expõem suas vulnerabilidades, mesmo que com um certo esforço.
— É importante ver um homem tendo dificuldades e trabalhando para ficar mais saudável mentalmente — admitiu Luke Tennie. — Eu não acho apenas positivo, mas essencial.
Já na avaliação de Brett Goldstein, não havia plano para mostrar outros tipos de masculinidade.
— É simplesmente quem nós somos, então acaba transparecendo no que criamos — destacou.
Jason Segel também sempre preferiu homens que não se encaixavam nos estereótipos, como se constata em Ressaca de Amor (2008), seu primeiro roteiro produzido.
— Nunca é uma tentativa de subversão, apenas falo de como vivencio as coisas.
Como o Roy Kent de Goldstein, o Paul Rhoades de Harrison Ford também é rabugento e de sorriso difícil. O personagem se mistura com a imagem do próprio astro, que, no entanto, sempre mostrou humor em seus trabalhos.
— Ele sempre foi engraçado — garantiu Bill Lawrence. —Só não tinha tido a oportunidade de ser engraçado de uma maneira mais duradoura.
No set, quem contracenou com ele teve contato com essa faceta.
— É difícil fazê-lo rir, você tem de batalhar. Mas, quando vem, é uma surpresa. E ele mesmo gosta muito de fazer pegadinhas — revelou Jessica Williams.
A resposta positiva de Harrison Ford ao convite foi uma surpresa para Lawrence.
— E é um dos pontos altos de minha carreira ele ter dito sim — confessou o produtor.
No primeiro episódio, que já estava escrito antes da reunião com o ator, Paul estava em poucas cenas. Com uma piscadela, o astro falou:
— Mas, se eu aceitar, vou aparecer em muitas mais, certo?.
A resposta, lógico, era que sim. E agora o público vai ter a chance de ver um Harrison Ford como nunca. Prova de que o veterano ator ainda está à procura de coisas novas para fazer.