Travessia, a nova novela das 21h da TV Globo, terá um árduo caminho para atravessar a partir desta segunda-feira (10), quando estreia no horário nobre da emissora, logo após o Jornal Nacional. Sucessora direta do fenômeno Pantanal, a trama de Gloria Perez vai precisar lidar com o luto dos fãs pantaneiros, ainda apegados às histórias da turma da Fazenda Leôncio. Terá também o desafio de manter fiéis os novos espectadores que foram conquistados pela antecessora, responsável por fazer subir em 30% a audiência da Globo entre o público jovem, pouco acostumado a ver novelas. Não vai ser fácil, mas se há uma coisa que a nova história de Gloria Perez tem, é potencial.
A narrativa criada por ela acompanha a saga da maranhense Brisa, interpretada pela atriz e cantora Lucy Alves, ex-participante do The Voice Brasil que vive agora sua primeira protagonista na dramaturgia. Noiva de Ari, personagem de Chay Suede, e mãe de Tonho (Vicente Alvite), filho que teve ainda na adolescência com o companheiro, ela vê sua vida virar de cabeça para baixo justamente quando está prestes a realizar o sonho de se casar, com véu, grinalda e tudo o que tem direito.
A ideia do casamento parece perfeita, não fosse uma oportunidade irrecusável que surge na vida do noivo. Ari, que é formado em Arquitetura e dedica-se à defesa do patrimônio histórico do Maranhão, tem a chance de viajar para o Rio de Janeiro e aprofundar suas investigações sobre uma construtora que planeja a derrubada de casarões históricos de São Luís para a construção de um shopping. Só que, no fim das contas, a viagem tem mais pulada de cerca do que apuração.
Em terras fluminenses, Ari não só passa a dar cada vez menos notícias para Brisa e o filho, praticamente esquecendo-se de que tem uma família, como se envolve com a patricinha Chiara, justamente a herdeira da construtora que ele deveria monitorar, interpretada pela ex-BBB Jade Picon. Acostumado com a vida simples que levava no Maranhão, o arquiteto se deixa deslumbrar pelo luxo que cerca o novo affair. Algo que, conforme o intérprete Chay Suede, é uma das principais características do personagem.
— Ele é um cara que vê o que está na frente dele e se apaixona pelo que está na frente dele. Isso pode ser entendido como volátil, mas também como alguém que se encanta. Quando ele está olhando um azulejo, é a coisa mais linda do mundo, e ele quer que aquilo sobreviva; quando ele está ouvindo o professor Dante (personagem de Marcos Caruso que é como um mentor de Ari) falar, é a pessoa mais sábia do mundo; quando ele está olhando para a Brisa, só existe ela no mundo; mas, quando ele não está olhando, ela existe um pouco menos. Ele tem essa característica de trabalhar com o que o olho dele consegue ver, de uma forma quase infantil — diz o ator, ressaltando que, apesar das atitudes controversas, seu personagem passa muito longe de ser um vilão.
Reviravolta
Diante do chá de sumiço do noivo, Brisa decide ir ao Rio de Janeiro a fim de descobrir o que aconteceu com ele. Mas, quando está na rodoviária, prestes a embarcar para a cidade maravilhosa atrás de Ari, vê-se em meio a uma grande confusão: um vídeo em que o rosto de uma criminosa foi digitalmente trocado pelo seu, por meio da técnica conhecida como deepfake, viraliza nas redes sociais, e a mocinha passa a ser perseguida por uma multidão que acredita que ela é a responsável pelo crime retratado nas imagens.
A confusão transforma totalmente a vida de Brisa, que do dia para a noite vê sua integridade física ameaçada por conta de uma "brincadeira de internet" feita do outro lado do mundo, sem nenhum motivo aparente, mas que foi capaz de prejudicá-la drasticamente. O caso desencadeia uma série de outras consequências no arco da personagem — inclusive, é isso que fará seu caminho cruzar com o de Oto (Romulo Estrela), com quem acabará por se envolver. Conforme a intérprete Lucy Alves, Brisa precisará buscar dentro de si a força para seguir adiante depois de tantos percalços.
— São muitas perdas, muitos caminhos diferentes, e ela tem que se organizar de uma forma muito rápida para recuperar o que ela vai perdendo. Ela não é uma mulher que fica premeditando, articulando, mas é uma pessoa muito sagaz. Pela vida mesmo, por sempre ter tido que se virar e tomar as suas decisões — diz a atriz, que define sua personagem como uma "heroína tipicamente brasileira". — O perfil dela me chamou muito atenção por ela ser essa rocha, essa coisa inabalável, que vai seguindo adiante, enxugando suas lágrimas, mas sempre avançando. E sempre com muita força e muita ternura.
Gloria Perez explica que a reviravolta da personagem é pano de fundo para um debate que há tempos queria aprofundar em sua dramaturgia, conhecida por trazer à luz temas atuais e, por vezes, até à frente dos seus tempos — como fez com a discussão sobre a clonagem humana na novela O Clone. No caso de Travessia, a bola da vez será a tecnologia, com tudo de bom que ela trouxe para a humanidade, mas tudo de ruim que também é capaz de causar quando utilizada de forma irresponsável.
— Eu gosto muito de olhar a sociedade de hoje, o modo como nos comportamos hoje, através do avanço da tecnologia. Cada tecnologia nova introduz dramas novos para a humanidade. É disso que se trata. Nós tivemos um grande avanço tecnológico que permitiu que as pessoas interagissem entre si, que o mundo parecesse pequeno, mas como usar isso? Acho que é sobre isso que as pessoas vão refletir — diz a autora. — Quis trazer essa história para mostrar até onde pode chegar uma brincadeira dessas. Uma pessoa já perdeu a vida por uma brincadeira dessas — lembra Gloria, citando o caso de Fabiane Maria de Jesus, morta por linchamento após um falso retrato falado de seu rosto viralizar nas redes sociais.
Além do ocorrido com Brisa, outros exemplares dos chamados "crimes virtuais" serão abordados ao longo da trama. A responsável por investigá-los será uma velha conhecida do público noveleiro: a delegada Helô, vivida em Salve Jorge por Giovanna Antonelli. A atriz vai reinterpretar a personagem em Travessia, que traz de volta também o ex-marido dela, o advogado Stenio (Alexandre Nero) — com quem a representante da lei vivia um eterno "termina-volta-termina" que, tudo indica, continua igual —, e a empregada doméstica Creuza (Luci Pereira), do inesquecível bordão "Ô Donelô".
Assim, o combo está fechado: Travessia tem uma protagonista que promete despertar a compaixão e a torcida do público; um antagonista que está mais para boy lixo do que para vilão, mas que deve causar muito ranço nos espectadores; um tema central pertinente; e a sempre bem-vinda memória afetiva trazida pela volta de personagens que já haviam conquistado a empatia do público. Tem tudo para dar certo.
Quem sabe bem disso é a autora Gloria Perez, acostumada a criar obras de sucesso na dramaturgia. Consciente de que tem mais uma boa história nas mãos, ela não se deixa abalar pela pressão trazida por Pantanal.
— É muito bom você estrear depois de uma novela que tenha elevado o patamar. É tudo o que a gente quer — diz.