“Jane Austen não escreveu ‘Agora eles eram como dois estranhos; não, pior do que estranhos, pois nunca poderiam vir a se conhecer. Viviam um afastamento perpétuo’ para que a Netflix reescreva na adaptação como: ‘Agora nós somos piores do que estranhos, somos ex’.”
Esta foi a reclamação mais popular entre os fãs de Austen, com milhares de curtidas nas redes sociais, ante a mais nova adaptação de uma obra da escritora britânica (reclamação esta publicada antes mesmo de a produção estar disponível na íntegra: foi uma mera reação ao trailer de Persuasão, divulgado em meados de junho).
Não parece ter sido o suficiente para desencorajar o público, que levou a obra ao posto de filme mais assistido da Netflix no Brasil no último final de semana (o título teve estreia mundial na sexta-feira). Em sites como Rotten Tomatoes, a produção vem tendo uma recepção mais positiva do público em geral do que de críticos especializados. O que pode ter acontecido?
A cineasta Carrie Cracknell escolheu estrear na direção com o romance final e mais melancólico de Jane Austen. Persuasão, como a citação inicial sintetiza, é um conto sobre um casal de jovens apaixonados que, após uma dolorosa ruptura, passa oito anos separados. Somente quando o Capitão Wentworth, da marinha britânica, retorna ao condado rural em que vive Anne Elliot, os dois se reencontram.
Apesar de acreditar que esteve certa em acabar com um noivado precoce entre os dois, quando tinha 19 anos, em nome da cautela — ele não tinha fortuna; ela não tinha a bênção de sua família —, Anne é uma criatura melancólica pela vida de que abriu mão. Como uma mulher na Inglaterra dos anos 1800, contudo, há pouco que ela possa fazer além de reagir ao mundo ao seu redor, manter suas obrigações e aceitar que tal foram suas escolhas e tal é a sua vida.
Elementos
Enquanto isso, Wentworth é puro ressentimento por ela não ter tido fé o suficiente em sua capacidade, ao ponto de se opor a qualquer argumento ou persuasão, por mais racional que fosse, para permanecer ao seu lado. Mesmo quando sua condição muda, sua fortuna aumenta e ele tem a chance de escolhê-la, ele decide permanecer no mar. Anos se passam e, quando o capitão resolve que é hora de arranjar uma esposa, sua opinião é clara: qualquer mulher bem-humorada e com alguma beleza. Qualquer uma — com exceção de Anne Elliot.
Tal é a tragédia de Persuasão: Anne não está apenas solteira aos 27 anos como tem a certeza de que é incapaz de conquistar o coração do único homem que ama. A jornada principal do livro não é de descoberta, mas de redenção, com a protagonista aos poucos se desvencilhando da ideia de que sua situação está além de qualquer esperança.
Ao menos essa é a jornada da personagem no livro de Jane Austen. No filme de Cracknell, protagonizado por Dakota Johnson e Cosmo Jarvis, as coisas são um pouco mais estranhas, uma vez que a cineasta não mudou apenas os diálogos para dar um ritmo mais moderno à história originalmente publicada em 1817.
Aqui, Anne Elliot revira os olhos para o resto do mundo como uma Elizabeth Bennet, bebe vinho e reclama da solterice como Bridget Jones e fala com a câmera com a mesma ironia de Fleabag. É difícil imaginar que essa personagem tomaria as mesmas decisões que foram tomadas pela Anne Elliot do livro e, ainda assim, é o que o roteiro apresenta.
Qualquer adaptação, é claro, é tão filha do seu tempo quanto do texto original e, em dias em que Bridgerton é um dos maiores sucessos de público quando a Regência Britânica vem à mente e brilham entre críticos produções anacrônicas como The Great e Dickinson, faz sentido que tentem trazer parte desse estilo para uma adaptação de Austen. Mas é difícil encontrar alguma lógica em como esses elementos foram adicionados em Persuasão.
Não que o filme não seja “decente o suficiente”, para citar outro herói de Austen. A adição de mais diversidade ao elenco é um acerto, com destaque para Henry Golding (de Crazy Rich Asians) como o arquirrival de Wentworth, Sr. Elliot. Mas o resultado não deve ser o suficiente para tentar aqueles que conhecem a qualidade do material original.