O Brasil sempre mostrou a cara através das novelas. Mesmo em tramas de época ou mais fantasiosas, havia sempre uma pitada do puro suco do nosso país, em todas as suas ironias, mazelas ou defeitos escancarados.
Até mesmo nas tramas que davam foco maior a gente fina, elegante e sincera, havia ali um nível de sutileza que escancarava feridas que nós mesmos, tão ufanistas e patriotas, custávamos a perceber. Um dos responsável por esfregar verdades na cara de uma elite falida, Gilberto Braga, morto na última terça-feira aos 75 anos. Ele foi além do que se esperava dos autores de sua época. Aqui, falamos das décadas de 1970 e 1980, ainda sob o jugo militar, quando qualquer passo em falso, palavra mal colocada na boca de um personagem ou mesmo versos de uma música poderiam ser caneteadas em vermelho. Censura era como se chamava.
Gilberto Braga driblou os censores como poucos. Em Brilhante (1981), criou um personagem gay assumido, mesmo sem externar em palavras o que realmente sentia. Quem percebeu os detalhes sabia, sem sombra de dúvidas, sobre a sexualidade de Inácio (Denis Carvalho).
Não existe racismo no Brasil? Gilberto virou o espelho para cada um dos telespectadores e provou que sim, o preconceito era velado, mas estava no meio de nós. O casal formado por Marcos Paulo e Zezé Motta em Corpo a Corpo (1984) foi rejeitado pelo público. E o autor, infelizmente, provou sua tese.
Seja em Anos Dourados (1986) ou Rebeldes (1992), o novelista contou histórias de amor cujo pano de fundo eram a intolerância, as hipocrisias sociais, a perseguição da ditadura, a morte de inocentes. Tudo isso com cenas impactantes e trilhas sonoras que marcaram época.
Já sem os grilhões da censura, mas com um povo pouco acostumado à liberdade recém reconquistada, Gilberto Braga escancarou com Vale Tudo (1988), em coautoria com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. Corrupção, preconceito, ricos que se julgavam superiores aos pobres, gente que fazia qualquer coisa para se dar bem na vida... Parece atual, mas lá se vão mais de 30 anos. E pouca coisa mudou, não é mesmo? Do alto de sua fortuna, Odete proferia como "Eu gosto do Brasil, mas de longe"; "O Brasil é uma mistura de raças que não deu certo". Absurdos, não acham? Mas, pense bem, será que não temos ouvido palavras bem semelhantes em pleno 2021?
Se nos anos 1980 o foco era ser rico, nos anos 2000, o sonho de muita gente era ser famoso. E aí, Celebridade (2004) ironizou com louvor um mundo de cliques, capas de revista, namoros inventados, escândalos que rendem muita audiência. Mais uma vez, mirou e acertou em cheio.
O mundo mudou, Gilberto Braga se guiava por esse pensamento quando escreveu Babilônia (2015), sua última criação. As pautas evoluíram, tabus foram derrubados ao longo dos anos, então, por que não exibir uma cena bombástica _ porém, tão singela _ logo no primeiro capítulo. Casadas há 40 anos, Estela (Nathalia Timberg) e Teresa (Fernanda Montenegro) se beijavam na boca, o que foi mal visto pela parcela conservadora do público. Gilberto tentou, mas esbarrou no preconceito, aquele mesmo preconceito que o ameaçava durante o regime militar. Infelizmente, não conseguiu derrubar essa barreira. Mas chutou várias portas e pisou sobre tabus que poucos tiveram coragem de mexer.
Deixou um legado de peso para a teledramaturgia brasileira. Quem cresceu vendo cenas memoráveis, como o assassinato de Odete Roitman (Beatriz Segall) em Vale Tudo ou a surra de Maria Clara (Malu Mader) em Laura (Claudia Abreu) em Celebridade só tem a agradecer a um pioneiro. Obrigada por tudo, mestre.