Tirando alguns clássicos mexicanos, como Chaves, A Usurpadora e Rebelde, os brasileiros, até alguns anos atrás, pouco assistiam a séries que retratassem a cultura de outros países, além dos Estados Unidos ou do próprio Brasil. Filmes, ainda que não tivessem o mesmo espaço nas salas de cinemas do que os blockbusters hollywoodianos, conseguiam encontrar algum público por aqui. Os shows televisivos, por sua vez, não conseguiam nem este "algum".
Isso se devia pela falta de distribuição destes programas e pela dificuldade de trazer estas produções para cá — afinal, exportar um conteúdo audiovisual, sem garantia de que ele fosse fazer sucesso, era um tiro no escuro. E, claro, também era um processo caro. Por isso, as apostas garantidas vindas dos norte-americanos eram as que ocupavam os canais abertos brasileiros. Os canais fechados mais acessíveis também não tinham — e ainda não têm — uma grande variedade de produções que não fossem as faladas em língua inglesa. E foi assim por muito tempo, até que o streaming mudou essa realidade.
— É muito positivo esse amplo acesso a diferentes culturas e obras audiovisuais que o streaming oferece. Acho que, de certa maneira, a gente viveu muito sempre pautado pelo mercado de distribuição mais tradicional. Centrar totalmente o nosso consumo nos Estados Unidos, que domina o mercado, é algo empobrecedor — diz Vicente Nunes Moreno, coordenador do curso de Realização Audiovisual da Unisinos.
A largada para este novo cenário, de difusão da cultura mundial por meio de séries e filmes, aconteceu com a Netflix, primeira plataforma de streaming a chegar ao Brasil. Na sequência, outros serviços semelhantes, como Amazon Prime Video, Globoplay, Disney+ e HBO Go, que desde terça (29) se tornou HBO Max, foram conquistando espaço e também passaram a investir em produções de vários pontos do planeta — realizando novas obras ou ajudando na distribuição de produtos audiovisuais gravados em países que não encontravam espaço fora de suas fronteiras.
Em nota enviada a GZH, a Netflix defende que grandes histórias são universais. Por isso, a empresa trabalha com realizadores locais para produzir conteúdos originais em todos os países em que atua.
"Nosso objetivo é produzir histórias que sejam autênticas para aquela região e funcionem naquele país, para que pessoas de diferentes partes do mundo se vejam representadas na tela. Quando esses títulos ressoam com o público local, acabam sendo cada vez mais bem recebidos em outras regiões. De modo geral, nossos assinantes estão assistindo a cada vez mais conteúdo em língua estrangeira em busca de novas vozes, culturas e visões de mundo", diz o documento.
E o Brasil tem a sua parcela de responsabilidade neste movimento de produção global. De acordo com a Netflix, a série nacional 3% foi uma das primeiras produções originais de língua não inglesa produzidas pela plataforma na América Latina, e o impacto que ela teve globalmente, em 2016, assim como o de Club de Cuervos, do México, motivou a empresa a continuar investindo em histórias locais.
— Da mesma forma que a gente consome as produções de múltiplos países, o que abre o nosso leque, guiado pelo nosso interesse, outros países podem olhar para a produção brasileira. É excelente este espaço e este fomento à produção nacional dados por estes novos players — enfatiza Moreno.
Veja, a seguir, uma seleção de séries em língua não inglesa que chegaram ao público brasileiro pelo streaming:
Lupin (França), na Netflix
Fenômeno recente da Netflix, a série francesa estrelada por Omar Sy marcou presença entre os títulos mais assistidos da plataforma de streaming no Brasil sem dificuldade — ao redor do mundo, a Parte 1 foi assistida por 76 milhões de residências em seus primeiros 28 dias de exibição. Na trama, o público é convidado a participar dos roubos "do bem" de Assane Diop, que emula o famoso personagem Arsène Lupin, além de fazer um tour dinâmico pela França. Divertida e ágil, a série conta com 10 episódios já lançados e foi renovada para seu terceiro ano.
La Jauría (Chile), no Amazon Prime Video
A série chilena que se tornou popular no Brasil, chocando os espectadores, é baseada em um crime real, ocorrido em 2016. Foi a partir da brutalidade de um estupro coletivo contra uma jovem, ocorrido na Espanha, que a produção do Amazon Prime Video foi desenvolvida, buscando denunciar esse tipo de crime. A atração, que foi renovada para a sua segunda temporada, conta em seu elenco com Daniela Vega, atriz transgênero que estrelou Uma Mulher Fantástica, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2018.
Il Cacciatore - O Caçador (Itália), no Globoplay
Trazida ao Brasil pelo Globoplay, a série italiana é baseada em uma história real de um jovem promotor público, o "Caçador” do título, que se torna o principal rival da máfia de Palermo nos anos 1990. Nas duas temporadas já lançadas, o protagonista vai atrás de chefões e matadores foragidos, no meio de uma guerra entre famílias pelo controle de uma organização criminosa. O personagem principal é baseado no magistrado Alfonso Sabella, que prendeu os principais mafiosos da Itália e tornou pública uma grande quantidade de histórias de crimes e violências.
Pátria (Espanha), no HBO Max
Séries espanholas tornaram-se fenômenos de popularidade no Brasil desde a chegada do streaming por aqui. Não faltam títulos para comprovar isso: La Casa de Papel, El Inocente, Vis a Vis, Elite e por aí vai. Porém, Pátria vale ser destacada: baseada no livro homônimo de Fernando Aramburu, a atração é a primeira produção espanhola da HBO. Em seus oito episódios, a série vai, durante três décadas, acompanhando duas famílias divididas pelas consequências do terrorismo do grupo separatista ETA, em Euskadi, no País Basco. Pátria, de maneira triste e forte, mostra como pessoas comuns vivem no contexto de um conflito que, apesar de local, tem diversos elementos semelhantes aos de outros confrontos ao redor do mundo. A série representa todo o poder dramático da Espanha.
Kingdom (Coreia do Sul), na Netflix
Definitivamente, o Brasil não tinha tradição em acompanhar séries sul-coreanas. Porém, tudo mudou com a chegada de Kingdom, série original da Netflix que não apenas leva os espectadores para a Coreia do Sul, como também para a era da Dinastia Joseon (1392-1897), com reinos, palácios, clãs, alianças, trajes deslumbrantes e... zumbis! Sim, Kingdom tem um pouco de tudo e a mistura resulta em uma das produções mais interessantes do gênero de terror ainda em andamento. Atualmente, duas temporadas, somando 13 episódios, estão disponíveis. O anúncio do terceiro ano da atração é aguardado pelos fãs.
Outros títulos
Diretamente da Noruega, Ragnarok, da Netflix, convida os espectadores a mergulharem na mitologia nórdica. Com duas temporadas já lançadas, a série vem em uma crescente de qualidade. Na mesma plataforma, O Último Guardião, da Turquia, e Dark, da Alemanha, ambas já encerradas, são ótimas aventuras para quem procura maratonas com começo, meio e fim.
Para quem busca uma comédia romântica levinha, Longe de Você, coprodução entre Espanha e Itália, está disponível no Globoplay. No Amazon Prime Video, a coprodução entre Chile e Argentina El Presidente apresenta um retrato tragicômico da corrupção no mundo do futebol, olhando para os bastidores do esporte que move paixões — e milhões.
Vale lembrar que os títulos citados nesta matéria são apenas alguns escolhidos para exemplificar uma lista gigantesca — e que só cresce — de séries de outras nacionalidades que conquistam o público que estiver disposto a mergulhar em uma nova cultura.