A atriz Glamour Garcia, 30 anos, chega para a entrevista com jornalistas no intervalo de gravações de A Dona do Pedaço e se emociona.
— Nunca tive tanto espaço para falar — diz, com a voz embargada.
Convidada para interpretar Britney na trama de Walcyr Carrasco na Globo, a atriz é uma mulher trans, assim como sua personagem, e diz que a recepção do público foi imensamente carinhosa.
— É muito lindo. Às vezes nem consigo expressar tudo o que estou sentindo. Fico muito feliz, não só por mim, mas por entender que Britney tem sido um espaço de alegria, emoção, amor, e que as pessoas podem se reconhecer nela, não só para a comunidade LGBT, para a população trans, mas para todos.
Glamour afirma ainda que viver a personagem da novela das 21h é uma oportunidade de fazer com que as injustiças sociais que existem em relação às pessoas LGBT+ sejam mais debatidas.
Violência e transfobia
Ela fala sobre o ambiente violento em que muitas pessoas trans vivem.
— As pessoas trans não terminam de estudar porque não conseguem, são perseguidas, sistematicamente agredidas. [...] As pessoas trans ainda são tidas como um foco para violência. São tidas como aberrações, como monstros — diz.
O Brasil registrou neste ano 141 mortes de pessoas LGBT+, segundo relatório produzido pelo GGB (Grupo Gay da Bahia) — mais de uma morte por dia. O dado deve manter o país entre os que mais matam LGBTs no mundo, seguindo a tendência de anos anteriores. Em 2018, no mesmo período, o número de mortes registrado pelo GGB foi de 140.
Glamour reconhece estar numa posição relativamente mais confortável do que outras pessoas transexuais por ser branca e por ter nascido em uma família com boas condições financeiras.
Ela ressalta a importância de Britney ser mostrada na novela como uma mulher trans que está inserida no mercado de trabalho e diz:
— Infelizmente, grande parte das pessoas trans ainda é miserável e ainda participa de setores muito informais de profissão. Isso não tira a dignidade de nenhuma dessas pessoas, mas a gente sabe que o mercado está fechado por preconceito.
A atriz chora quando lembra de seus pais, José e Valéria, e diz que sem eles não teria chegado onde chegou. Glamour afirma que "teve uma luta pessoal, como toda pessoa trans tem", mas que certamente a boa relação familiar foi um ponto extremamente positivo em seu desenvolvimento pessoal.
— Eles são com certeza as pessoas mais importantes da minha vida. Devo tudo a eles. Passamos muita coisa juntos. Sou a mais velha dos meus irmãos, tenho 30 anos, nasci nos anos 80. As coisas eram diferentes. Meu pai era um homem muito jovem. Durante a minha infância e adolescência, não se havia discussão ainda no campo da saúde, da educação, do desenvolvimento social. (...) Meus pais construíram a pessoa que eu sou.
A aceitação da mãe, que é psiquiatra, foi um pouco mais fácil do que a do pai, um homem que teve uma criação bastante machista, segundo Glamour. No entanto, com o tempo, tudo se ajustou.
— Quando a minha mãe tinha lá pelos seus 30 anos, não havia abordagem sobre isso [na psiquiatria]. Fui a primeira trans que nós, como família, conhecemos. Fui a única pessoa trans do meu convívio durante muitos anos — conta a atriz, acrescentando que somente aos 20 anos conheceu outra pessoa do mesmo gênero.
Com 18 anos de carreira, Glamour Garcia vive seu momento de maior visibilidade. Ela diz que "passa um filme em sua cabeça" quando pensa no caminho que percorreu desde o início até aqui.
— Eu sofri, mas tive o privilégio de ser eu mesma. Passei muita coisa difícil, mesmo sendo branca, tendo estudado, tendo uma boa condição financeira. Sempre ganhei muito bem, sempre me mantive, tenho uma vida confortável há uns dez anos.
Mudança de sexo
Glamour diz que deseja fazer a cirurgia de redesignação sexual, mais conhecida como cirurgia de "mudança de sexo", mas ainda não tem planos para isso.
— Com toda a honestidade, eu sempre quis operar. Era um desejo que me paralisava, eu me sentia fraca, frágil, incapaz. Mas Deus sabe o que faz. Antes eu não tinha tempo, nem dinheiro, e agora que eu tenho sobrando eu posso ter o amor próprio de decidir — afirma.
Sem timidez ou acanhamento, a atriz conta ainda que nunca revelou ser trans aos homens com quem se relacionou. Ela ressalta, no entanto, que isso foi um grande risco e que teve amigas violentadas em situações como essas.
— Não contei porque sou mulher e sempre senti que esse era o meu direito. (...) Parece uma brincadeira, mas isso é uma questão nociva, porque às vezes parece que tira um pouco o direito da mulher trans de ser mulher. Mulher é mulher, não interessa se é trans ou se é cis. Cada corpo tem a sua especificidade.(...) É só na hora do "vamos ver" que o povo vai saber.
Em A Dona do Pedaço, Abel (Pedro Carvalho), que é apaixonado por Britney, também não sabe que ela é uma mulher trans, mas a atriz mantém sigilo sobre como vai acontecer o momento da descoberta.