Gloria Perez está prestes a respirar aliviada com a sensação de dever cumprido. Na próxima sexta-feira (20), quando a RBS TV exibir o último capítulo de A Força do Querer, a autora poderá partir para suas férias em Portugal tendo devolvido o status de horário nobre às novelas das nove.
Os números comprovam. A trama escrita por ela tem a melhor média de audiência desde a icônica Avenida Brasil (2012), chegando a 37 pontos, com picos de 46. Gloria reafirmou a relevância ao formato com tramas polêmicas e necessárias, como a de Ivan, vivido por Carol Duarte, que passou pelo processo de transição de gênero, e a de Bibi Perigosa (Juliana Paes), que caiu no mundo do crime em nome do amor. Nesta entrevista, realizada nos Estúdios Globo, no Rio, a autora faz um balanço do trabalho, fala sobre patrulhas ideológicas e critica aqueles que decretaram a morte das telenovelas no país.
Ao final do roteiro do último capítulo de A Força do Querer, entregue na última na segunda-feira, você escreveu uma mensagem à equipe dizendo que a caminhada "foi bonita, leve e afetuosa". Esse é o balanço do trabalho?
Foi uma novela em que tudo fluiu de maneira tranquila. A equipe teve uma conexão imediata que perdurou por todos esses meses. Normalmente, ao final de uma novela, o elenco está muito cansado, mas nesta todos dizem que já estão com saudade. É bonito quando a gente consegue transformar um grande esforço em uma coisa leve.
A Força do Querer não tem um núcleo dramatúrgico mais importante do que outro. Isso foi importante para o sucesso da novela?
Quando apresentei a trama antes da estreia, já avisei que seria uma novela com muitas protagonistas e todas com o mesmo peso. Talvez o fato de serem várias tramas anime mais a história, dê mais movimento. Também optei por não ter apenas um casal principal, e não sei dizer se isso pesou mais ou menos. Embora essa fórmula tenha dado bons resultados em outras novelas, como em O Clone (2001) com a Jade (Giovanna Antonelli) e o Lucas (Murilo Benício). Agora, foi a primeira vez que assumi três protagonistas: Ritinha (Isis Valverde), Jeiza (Paolla Oliveira) e Bibi (Juliana Paes). Mas, na verdade, sempre usei esse truque. Na própria O Clone, além da Jade e do Lucas, havia a história da Mel (personagem dependente química vivida por Debora Falabella), que era forte e, em determinados momentos, tomava o primeiro plano. Agora resolvi assumir três histórias. Não sei se as pessoas repararam, mas fiz todos os capítulos com as três personagens centrais aparecendo. Isso não é fácil.
Diante do sucesso, a emissora chegou a sugerir que a novela fosse estendida?
Não. Foi tudo conforme o combinado desde o início, com 173 capítulos. É claro que teria história para mais capítulos, mas poderia criar "barrigas" que a novela não teve. Seria um prejuízo para a obra e para a Globo, que tem toda uma programação já planejada.
Que ponto você destaca na reação do público?
O que me trouxe um enorme sentimento de recompensa foi o fato de o público ter conseguido acolher o Ivan (personagem trans vivido pela estreante Carol Duarte, que começou a trama como Ivana e apresentou todo o processo de transição de gênero). Ali havia um risco de rejeição justamente por vivermos esse momento tão conservador na vida do país. Para mim, mais confortante foi isso.
Você tinha um plano B para o caso de acontecer como em Babilônia, com o boicote ao casal lésbico interpretado por Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, e o público rejeitar a personagem transexual vivida pela Carol Duarte?
Não. Em nenhum momento pensei na possibilidade de não dar certo. Resgatei elementos que usei em outra novela. Já havia feito uma trama com a temática LGBT em Carmem, que foi exibida pela TV Manchete em 1987. Naquela época, geralmente, quando tinha um personagem gay, ele era sempre o engraçado, o cabeleireiro, uma coisa bem caricata. Resolvi tratar do tema de forma séria, colocando um industrial, viúvo, pai de família — e gay. Ali trabalhei com o mesmo recurso que usei com o Ivan: não comecei a trama dizendo que o personagem era gay. Iniciei mostrando que o cara era um ótimo pai, um excelente patrão, o melhor amigo que alguém pudesse ter, mas que tinha um mistério na vida.
Aí, quando todos já estavam apaixonados por ele, descobriram que Dr. Junot (Maurice Vaneau) era homossexual. Isso fez com que o público aceitasse lindamente, abraçando-o. Eu quis trazer essa experiência para o Ivan. A primeira cena não poderia ser com ele dizendo: "Mamãe, eu não sou uma menina". Dessa forma, eu levaria todo o público reacionário ou que não compreendesse a questão a rejeitá-lo. O ponto de partida foi criar a empatia. Trabalhamos muito para que essa empatia fosse fechada antes de o Ivan assumir sua transexualidade para a família (sequência mostrada no capítulo cem, de 29 de agosto, que chegou a alcançar 46 pontos nos índices de audiência medidos pelo Ibope).
Você conseguiu explicar muito bem as diferenças entre gênero e sexualidade. Como encontrar o equilíbrio para não escorregar para o didatismo exagerado e acabar tirando a emoção da história?
Acredito que o recurso fundamental foi deixar o Ivan/a Ivana falar sobre os seus sentimentos. Em nenhum momento, o personagem levantou uma bandeira; apenas expressou o que estava sentindo. Somente essa chave já muda todo o entendimento da história.
Autor de novela das nove é quase como o técnico da Seleção Brasileira: no pé dele há 200 milhões de pessoas achando que são novelistas tão bons tanto quanto ele. Como você lida com isso? As críticas a afetam?
Isso não pode me afetar de forma alguma, senão perco a mão. O que faço é brincar com a imaginação das pessoas. Quando você trabalha para construir a emoção, ao mesmo tempo está levando isso para o público. Então, você faz ele sentir raiva, depois alegria, felicidade, e aí pensa: "Vou fazer eles chorarem um pouco" (risos). A Bibi (Juliana Paes) é um exemplo. Primeiro, quando ela resolveu seguir o Rubinho (Emílio Dantas), todo mundo ficou com raiva. Agora que ele a traiu, todo mundo está morrendo de pena dela. Você vai construindo identificações com o público e estimulando a fantasia. Também por isso acabam surgindo umas teorias meio absurdas sobre as histórias, como essa de que o Dedé (João Bravo) é filho do Caio (Rodrigo Lombardi), sendo que o Caio esteve fora do Brasil por 15 anos e o garoto tem nove. Quer dizer, mexo com a imaginação das pessoas e elas levam a sério as teses que vão criando. Isso é ótimo, pois me dá a medida do quanto consegui ter sucesso na minha proposta.
Você considera As redes sociais um termômetro relevante para medir a reação do público?
É uma coisa louca. O Twitter, por exemplo, tem algo de engraçado, mas é um ambiente falso. Ali tem muita campanha, muito robô, muito hater. Não é um lugar de onde se possa tirar uma medida. Onde eu realmente vejo a receptividade das minhas histórias é na rua. Quando saio de casa, sinto a repercussão. Quando a novela é um sucesso, repercute nos ambientes de convivência, motiva conversas mesmo entre desconhecidos. É claro que as redes sociais também têm a sua importância, mas é preciso estar muito atento para saber filtrar o que é real e o que é falso ali.
Há muito tempo que uma novela não virava assunto nacional. Hoje, praticamente todo mundo sabe quem é Bibi Perigosa.
Isso me deixa muito feliz, porque vinham anunciando a morte do gênero (telenovela) há um tempão. A Força do Querer é a prova de como o gênero está bem vivo. Novela é uma coisa muito brasileira, e cada vez mais países no mundo estão apostando no formato também.
As pessoas estão ligando novelas às coisas arrastadas e velhas, e as séries a tudo o que há de inovador na teledramaturgia. Mas as séries só passaram a ser sucesso mundial quando recorreram aos recursos usados antes em novelas.
Gloria Perez
Novelista
Sobre essa crise do formato e também sobre a popularização das séries, as principais críticas são de que as novelas são lentas. A Força do Querer foi elogiada porque, ao contrário disso, teve capítulos movimentados. Qual o segredo para dar ritmo a um folhetim?
As pessoas estão ligando novelas às coisas arrastadas e velhas, e as séries a tudo o que há de inovador na teledramaturgia. Mas as séries só passaram a ser sucesso mundial quando recorreram aos recursos usados antes em novelas. Primeiro, incorporaram essa coisa de o sensacional, o fantasioso, estar acima da coerência, que é algo típico do folhetim. As séries, em especial depois de Lost, têm um arco longo, com uma história central que perpassa várias temporadas e algumas tramas paralelas. Os produtores e roteiristas pegaram tudo o que faz a explosão do folhetim para colocar nas séries. Então, qual a vantagem das séries? Em uma época em que você é o dono do seu horário e escolhe quando e quanto quer assistir, você pode chegar numa Netflix e fazer uma imersão vendo muitas temporadas em sequência.
Na TV aberta, não tem isso. Você até pode ver depois determinado capítulo na plataforma de streaming, mas ainda está preso à grade, de ter aquele dia para ver. A forma de assistir mudou bastante, mas não podemos associar novela ao que é velho. A novela tem o ritmo da sua época. Uma trama da década de 1980 hoje pode parecer muito arrastada, mas lá não tinha celular, não tinha internet, a vida era mais lenta e isso, consequentemente, estava refletido nas narrativas. É óbvio que você, como jornalista, vai fazer um texto mais acelerado hoje, quando vive em um tempo em que uma pessoa, para falar com qualquer outra, só precisa mandar uma mensagem por WhatsApp.
Parte do público que critica as novelas aponta o que julga ser pequenas incoerências. Um exemplo foi a viagem que Bibi fez de táxi do Nordeste ao Rio de janeiro. Esse tipo de comentário focado em detalhes a irrita?
Poderia me irritar se eu ficasse conversando muito sobre isso, dando bola para as reclamações. Mas, na maioria das vezes, isso até me diverte. Voltando às redes sociais: ali as pessoas querem defender suas causas, querem mesmo é o embate. Não adianta ficar preso a isso. Há também o complexo de vira-latas, de encontrar defeitos em tudo o que é nacional e supervalorizar o que é de fora, que está forte com essa febre das séries. Muitas vezes, elogiam-se séries que nem são tão boas. Alguém alguma vez questionou quem limpava a sala do Dexter depois que ele matava as pessoas? Esse tipo de pergunta não se faz quando se trata de produções estrangeiras. Nas novelas, tentam encontrar o pelinho no ovo. Ainda assim, não me irrita porque é isso que muita gente quer: apontar defeitos para ficar discutindo no Twitter.
Você é apontada como uma autora que antecipa tendências. Um exemplo foi Explode Coração (1995), na qual o casal protagonista conversava por chat. você chegou a ser criticada à época por retratar um casal assim.
Sou uma pessoa curiosa, que gosta de sentir o seu tempo. Me motiva muito prestar atenção ao mundo e compartilhar o que vejo com os outros. Ser escritor é isso. Não fico o tempo todo dizendo: "Isso daria uma novela". Mas observo e capto o que acontece e, mais para a frente, acabo usando em um roteiro.
Está mais difícil escrever novela no contexto atual, de retorno do conservadorismo? A patrulha é insuportável e ganhou força com as redes sociais. Mas, se eu ficar prestando atenção, não escrevo mais nada. Ignoro tudo para não correr o risco de não conseguir mais trabalhar.
Uma polêmica de A Força do Querer foi a trama da Bibi, que entra no tráfico pelas mãos do marido. Como trabalhar com isso?
O caso da Bibi me incomodou muito, pois as críticas transcenderam à personagem e foram feitas à história real. Estamos falando de uma pessoa que foi julgada e inocentada. A Bibi verdadeira (Fabiana Escobar, que relatou sua história em livro e serviu de inspiração para a trama) era uma mulher apaixonada que fez besteira, mas não cometeu crimes. A Bibi da novela foi mais longe do que ela. Se as críticas fossem para a personagem, ok, mas se iniciou um movimento de ataque à pessoa real. Isso é perigoso. Além do que, há machismo nessas críticas. Querem que Bibi seja praticamente esquartejada pelo que fez. Enquanto isso, o Sabiá (Jonathas Azevedo), que é o dono do morro, responsável por todos os crimes, ganha apoio. E o Rubinho também. Não vejo ninguém pedindo para ele as mesmas punições que pedem para Bibi.
Conforme o trabalho avança, os atores podem trazer elementos de composição dos personagens que não haviam sido previstos. O quanto você se permite mudar a trama no meio do processo?
Dou liberdade até o ponto que o ator não traia o personagem. Às vezes o ator não sabe o que está por vir mais adiante, e pode fazer algo que escancare uma contradição. É claro que o ator dá a sua contribuição, mas tem um limite. Por isso, antes de começar a gravar uma novela, a gente faz tantos encontros com o elenco e a direção. É para ir azeitando a forma como a história será conduzida.
A Força do Querer foi muito elogiada, mas teve críticas, também. Um ponto negativo é a atuação do Fiuk. Você considera que tenha sido um erro ter dado um papel tão importante para ele?
Há um ponto que precisa ser destacado: todo iniciante é um iniciante. O nível de cobrança tem sido muito grande, beirando a crueldade com um profissional que está começando uma carreira. Ele tem se dedicado muito, está estudando, mas é um iniciante.
Como é sua rotina quando está escrevendo uma novela? Quantas horas por dia precisa trabalhar para dar conta de levar toda a trama sozinha?
Não são horas, são números de páginas diários. Preciso escrever 30 páginas por dia. Posso fazer isso de maneira seguida, e costuma levar entre seis e sete horas, ou posso escrever dois blocos, parar para dar um passeio e retomar. A rotina não é igual a de quando não estou escrevendo, mas não fico enclausurada em casa. Até porque não posso perder o contato com a energia da vida, pois é isso que deixa uma novela vibrante. Quando você se tranca, fica isolada, isso acaba passando para o papel.
Escrever sozinha é uma necessidade? Não pensa em ter colaboradores?
É uma necessidade minha, sim. Não é por não gostar de outras opiniões no meu trabalho, mas acho muito difícil organizar a coisa toda. Admiro muito quem consegue. É complicado discutir e chegar a um acerto quando tem 10 pessoas trabalhando num texto. No meu caso, a ideia vem diante da página em branco, a narrativa nasce ali.
Já teve algum momento em que a ideia não veio?
Olha, tem que escrever sempre, senão ficam 60 páginas para o dia seguinte. Acontece de, faltando a inspiração, escrever um capítulo sem graça, mas você não deixa de fazê-lo. Novela é uma esteira rolante, não pode parar nunca. Ninguém da equipe pode parar. Nem eu, nem diretor, nem atores, nem produção. É um trabalho contínuo.
O que gosta de assistir na TV?
Fora novelas, gosto muito de programas de entrevistas, de programas musicais, documentários. Série eu gostou muito, em especial das policiais. Também curti muito a série Feud, sobre a Joan Crawford e a Bette Davis. A única coisa que não me atrai muito, embora eu assista para ver se me pega algum dia, é série de vampiro e série médica, por que não consigo ver as cenas de medicina. Assisti alguns episódios de Dr. House, mas não vi as partes dos procedimentos médicos.
Você costuma rever seus trabalhos e analisar o que poderia ter feito de outra forma?
Não, porque não tem mais o que ser feito. Se vou rever, tento ir com o pensamento de que já é passado e nada pode ser mudado.
Você conseguiria eleger seus três melhores trabalhos?
É difícil fazer isso. Cada novela corresponde a uma fase da minha vida. A Força do Querer está sendo marcante, mas alguns trabalhos anteriores, como América (2005) e O Clone, também o foram.