Rio de Janeiro – A novela A Força do Querer, sucesso que narra a transição de um transgênero, estava para começar, e os moradores de um abrigo pareciam não prestar atenção às sirenes tocando do lado de fora e às baratas que passeavam em meio a um labirinto de pés sujos e tigelas de pipoca no chão.
Reunir-se todas as noites para assistir ao programa de televisão em uma sala coberta de pichações se tornou um ritual para os moradores da Casa Nem, um refúgio no centro do Rio de Janeiro para brasileiros transgêneros e não conformistas, que veem a história de Ivana, vivida pela atriz Carol Duarte, se transformando em Ivan como a primeira representação digna e matizada de pessoas como elas em um dos principais meios de comunicação do país.
- Olha, ela agora tem uma barbinha linda! Será que eles vão colocar um bigode nela? - perguntou Letthycia Siqueira, uma das moradoras, referindo-se ao personagem Ivan.
A novela da Globo, que atrai cerca de 50 milhões de pessoas todas as noites, também atingiu um alvo mais amplo em um momento em que as questões relacionadas aos gays e aos transgêneros se tornaram mais importantes no país.
Estão pendentes no Supremo Tribunal Federal dois casos observados de perto pelos ativistas como fundamentais para os direitos dos transgêneros, um envolvendo a recusa de um shopping center de oferecer acesso a um banheiro a uma mulher transgênero e outro sobre o requerimento de cirurgia como condição para o reconhecimento da identidade de uma pessoa como transgênero.
Homossexuais e transgêneros tiveram vitórias notáveis nas cortes brasileiras, entre elas a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2013 e o reconhecimento do direito de mudar o nome e o gênero em alguns documentos de identificação fornecidos pelo governo. Transformações recentes nas políticas de cuidados de saúde também tornaram mais fácil para que transgêneros consigam cuidados médicos relacionados à transição, como terapia de reposição hormonal.
Os ativistas, no entanto, veem esse processo como delicado e reversível em um momento em que políticos conservadores e igrejas evangélicas, que se opõem aos direitos de homossexuais e transgêneros, têm cada vez mais influência.
- Essa questão precisa sair dos tribunais e entrar na lei para esclarecer e garantir os direitos dos trans de uma maneira uniforme - afirma Ligia Fabris Campos, professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro.
Na visão dos ativistas, porém, a perspectiva de aumentar os direitos dos gays e dos transgêneros no Congresso em um futuro próximo é pequena. Um dos principais candidatos à eleição presidencial do ano que vem, Jair Bolsonaro, é um político que muitas vezes despreza os homossexuais e diz que permitir que mulheres transgênero usem o banheiro feminino é "uma inversão de valores". Um juiz federal decidiu recentemente que a chamada terapia de conversão para tratar a homossexualidade deveria ser permitida.
Enquanto o Brasil desenvolveu uma reputação de ter políticas sociais inclusivas durante os 13 anos em que foi liderado pelo Partido dos Trabalhadores, de esquerda, cujo mandato terminou no ano passado, o país permanece de várias maneiras bastante conservador, e ativistas afirmam que homossexuais e transgênero são estigmatizados e enfrentam violência generalizada.
No ano passado, pelo menos 144 transgêneros foram mortos no país, segundo a ONG brasileira Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Este ano, o grupo identificou 138 mortes, incluindo o caso de Dandara dos Santos, uma mulher transgênero de 42 anos, do norte do país, cujo espancamento público por oito homens e adolescentes, em fevereiro, chocou a nação depois que um vídeo do ataque foi publicado na internet.
A Globo, principal rede de televisão do país, já usou várias vezes suas novelas populares para moldar os debates em torno de questões controversas, como casais inter-raciais e relacionamentos do mesmo sexo. Mas a emissora nunca havia colocado no ar uma novela com um personagem transgênero. Além disso, alguns personagens secundários da novela são transgêneros na vida real.
- A novela é um reflexo da sociedade brasileira do momento. Achei que era a hora de falarmos disso - explica a escritora Gloria Perez, criadora de A Força do Querer, afirmando que queria um personagem transgênero com o qual a audiência pudesse ter empatia e cuja história incentivasse conversas entre o público.
Carol Duarte, a atriz que interpreta Ivan, diz que o papel foi uma responsabilidade assustadora.
- Mas a reação tem sido tão calorosa e de apoio. As pessoas estão torcendo para que Ivan encontre sua própria felicidade - conta.
A história de Ivan, que vai ao ar na rede de televisão mais assistida do país, pode ser a representação positiva mais importante das questões dos transgêneros na cultura popular. Mas existem outras. A cantora Pabllo Vittar se tornou um ícone amado por vários brasileiro e um símbolo da fluidez de gênero.
- Eu não ligo se você me chamar de ela ou ele - disse a cantora, que expressou preferência pelo neutro "elx", em lugar de ela ou ele. - Sou apenas um garoto gay de 22 anos do Maranhão - afirmou no camarim, enquanto desenrolava um brinco de uma longa peruca loira, antes de um show no Rio de Janeiro.
Os sucessos de Pabllo, que canta em um soprano nasal, se tornaram hinos não oficiais da comunidade lésbica, gay, bissexual e transgênero do país. Recentemente, um dueto que Pabllo gravou com Anitta, uma das maiores estrelas pop do país, quebrou um recorde de visualizações brasileiras no YouTube, e três de suas canções estão entre as cinco mais tocadas no Spotify do Brasil.
Pabllo fez uma participação em um dos capítulos mais recentes da novela, e os seguidores de seu Instagram triplicaram para 4,6 milhões depois de uma apresentação no Rock in Rio.
- A drag queen mais seguida do mundo é brasileira - diz a cantora satisfeita. - Mas ainda temos esses problemas aqui.
A novela dramatiza algumas das lutas enfrentadas pelos transgêneros. Em uma cena, Ivan corta o cabelo, um símbolo de feminilidade muito valorizado na cultura brasileira, e grande parte da novela gira em torno do relacionamento tenso entre ele e sua mãe, que se esforça para se livrar da imagem de sua querida garotinha com cachinhos nos cabelos.
Fora de sua casa, onde fica mais desconfortável, Ivan também é confrontado com os desafios de uma vida em transição: empregadores em potencial viram a cara para ele, estranhos briguentos o provocam e até mesmo o atacam.
Problemas como esses são parte da realidade sombria da Casa Nem. A maioria dos cerca de 30 moradores era sem-teto antes. Como estimados 80 por cento dos transgêneros brasileiros, quase todos os habitantes ganham dinheiro por meio de prostituição e retornam de noite para dormir em beliches triplos.
Siqueira, de 22 anos, foi expulsa de casa quando tinha sete anos por se vestir com roupas de menina.
- Vivi tudo isso que a novela está mostrando - contou ela enquanto assistia ao capítulo. Embora Ivan seja um personagem de classe média que não teve que lidar com o fato de se tornar morador de rua ou se prostituir para sobreviver, como Siqueira, ela vê algumas similaridades entre os dois.
- Os transgêneros precisam passar por várias lutas e encontram preconceito independentemente de sua classe ou da idade. Todas fomos rejeitadas em algum momento - garantiu.
A novela lhe deu esperança.
- Sempre fomos invisíveis. Pelo menos agora as pessoas tem uma chance de abrir seus corações. Pelo menos agora você pode nos ver - explicou.
Por Shannon Sims