Imagine uma novela sobre a Revolução Farroupilha em que Giuseppe Garibaldi é interpretado por um ator japonês. Parece estranho? Pois é mais ou menos o que acontece em Sol Nascente, nova novela das seis, que estreou na segunda (29/8) na RBS TV. Com o pano de fundo das imigrações japonesa e italiana ao Brasil, a trama aborda a amizade entre famílias das duas colônias, com foco na história de amor entre Mario de Angeli (Bruno Gagliasso) e Alice Tanaka (Giovanna Antonelli). É justamente aí que reside o problema. Enquanto a família De Angeli é liderada por Gaetano, interpretado por Francisco Cuoco (ator criado no bairro do Brás, referência da comunidade italiana na capital paulista), o ator escalado para interpretar Kazuo, o patriarca da família Tanaka, foi Luis Melo (descendente de índios com italianos que nada tem a ver com a comunidade japonesa). Pior: anteriormente convidado para o papel, Ken Kaneko, ator japonês naturalizado brasileiro (ou seja, um legítimo imigrante), foi desligado da produção sem maiores explicações. O fato causou comoção antes mesmo de o elenco ser anunciado oficialmente e, em resposta a isso, atores de ascendência asiática se uniram para criar o coletivo Oriente-se, que lança oficialmente nesta quarta-feira (31/8) um manifesto pela igualdade étnica, que já conta com assinatura de nomes como Marcos Miura (Morde e assopra), Cristina Sano (Roda de fogo), Jui Huang (Negócio da China) e Maya Hasegawa (O caçador) – além do próprio Kaneko.
Devido à polêmica, os autores da novela tiveram que fazer uma gambiarra para explicar o porquê de dois atores de aparência ocidental liderarem o núcleo japonês: inventaram que Kazuo é neto de um americano e uma japonesa, e colocaram Alice como sua filha de criação. O desligamento de Ken Kaneko foi justificado pela idade do ator. Aos 82 anos, apesar de ter "o estofo e a experiência necessária para fazer um protagonista", Kaneko foi considerado "com muita idade" para interpretar o melhor amigo do personagem de Cuoco, que tem 81 anos. Com 68 anos, Melo teria sido a escolha mais adequada para o papel. Quanto à personagem feminina, em entrevista ao EGO, Walther Negrão, responsável pelo roteiro ao lado de Júlio Fischer e Suzana Pires, revelou que chegou a cogitar uma protagonista japonesa durante os testes, mas não encontrou nenhuma com status de estrela, tendo que apelar para Giovanna. É compreensível que a Globo tenha medo de arriscar em rostos novos para segurar a audiência de suas produções mas, com todo o rol de estrelas que compõe o restante do elenco, não teria sido Daniele Suzuki um nome conhecido o suficiente para o papel? E como ter atrizes de ascendência asiática com status de estrela se não são oferecidos papéis não estereotipados em número suficiente para que estas adquiram a experiência necessária?
Quanto mais se criam desculpas para justificar essas escolhas equivocadas, mais fica claro que a intenção não foi "prestar homenagem às duas maiores colônias que a gente tem no nosso país", conforme colocado pelo diretor Leonardo Nogueira, mas sim se utilizar do exotismo da cultura oriental para criar um produto palatável ao público branco, caracterizando o chamado "whitewashing" (ou "embranquecimento", termo discutido recentemente quando Scarlett Johansson foi escolhida para dar vida à major Motoko Kusanagi na adaptação cinematográfica do anime Ghost in the shell). Fantasiar Luis Melo com o uniforme do turista japonês (chapéu cata ovo, camiseta por baixo da camisa e óculos fundo de garrafa para esconder a falta dos característicos olhos "puxados") – embora sem a câmera pendurada no pescoço – e forçar um sotaque só não é pior do que o recurso utilizado para "transformar" Rodrigo Pandolfo no apresentador de TV coreano de Geração Brasil (2014): fita adesiva e barbante para puxar os olhos. Constantemente chamar o personagem de "otousan" ("pai", em japonês) tampouco o transformará, de fato, em japonês (o que seria um movimento inverso ao que parece ter acontecido com a versão jovem do personagem, interpretada no flashback por Daniel Uemura que, em um passe de mágica, perde os traços orientais ao envelhecer). Infelizmente, a caracterização de atores caucasianos para interpretar personagens orientais não é de hoje. Conhecida como "yellowface" (em referência ao blackface utilizado pelos atores de teatro para interpretar negros), a prática acontece desde os primórdios do cinema: Richard Barthelmess como Cheng Huan em Lírio Partido (1919), Mickey Rooney como senhor Yunioshi em Bonequinha de luxo (1961) e Katharine Hepburn como uma chinesa em A estirpe do dragão (1944) são apenas alguns dos exemplos na vasta história do audiovisual.
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A justificativa, desde aquela época, sempre foi a mesma: a de que não existem atores orientais aptos aos papéis. Mas será que, em 2016, no Brasil, país que comporta a maior comunidade japonesa fora do Japão, realmente não existem atores de ascendência oriental para interpretar esses personagens? Depois de termos avançado tanto na discussão da representatividade na mídia, esse tipo de atitude me parece um grande retrocesso frente a todas as conquistas alcançadas até agora em inúmeros setores por diversas minorias. Os japoneses e seus descendentes já estão no Brasil há mais de um século, e vivem na sociedade brasileira como cidadãos de qualquer outra etnia: com famílias multirraciais, amigos e profissões das mais variadas possíveis, incluindo, veja só, a de atores e atrizes (só no coletivo citado são mais de 100). Ainda assim, continuamos sendo rotulados e encaixados dentro dos estereótipos que o olhar dominante criou para nós. Já não nos basta mais ser a irmã mais nova e viúva (que, apesar de ter o mesmo avô americano, é "puramente japonesa") do patriarca interpretado por um caucasiano, o adolescente geek e engraçadinho aficionado em tecnologia e jogos digitais, a artesã especializada em peças e luminárias de bambu, a prima que quer um casamento tradicional japonês e faz questão de se envolver apenas com japoneses ou descendentes. Não precisamos de uma protagonista interpretada por uma atriz caucasiana para contar ao público, na estreia da novela, quem somos e como nos relacionamos a sua personagem enquanto permanecemos calados dentro de um templo budista (religião que não é comum a todos nós, por incrível que possa parecer para alguns). Não precisamos que a mesma atriz dite tendências da moda no país se apropriando culturalmente do kimono, traje tradicional da nossa cultura, hoje utilizado apenas em festividades. Precisamos apenas que nos sejam dadas vozes para falar (sem sotaque) e oportunidades ao menos parecidas com as que os atores ocidentais têm. Só assim conseguiremos deixar de ser vistos como apenas o tintureiro, o feirante, o pasteleiro, o nerd, a melhor aluna da turma. Só assim nossos rostos serão conhecidos o bastante para que não "precisem" mais escalar atores de traços ocidentais para interpretar o patriarca de nossa família.
P.S.: Gostaria de deixar claro que não tenho absolutamente nada contra o Luis Melo e a Giovanna Antonelli. Considero os dois excelentes atores e não questiono, de forma alguma, seu talento e profissionalismo – apenas a inadequação do casting.
*Jéssica é assistente de conteúdo de Zero Hora, estudante de Jornalismo da UFRGS e neta de japoneses
Confira a íntegra do manifesto do coletivo Oriente-se:
Nós, artistas e profissionais das artes com ascendência oriental, seja japonesa, chinesa ou coreana, reivindicamos por igualdade no tratamento justo a todos os cidadãos, repugnando práticas de discriminação étnica que ocorrem em algumas produções de audiovisual que retratam o oriental de forma estereotipada, preconceituosa e distorcida da realidade. Em especial para produções populares de rede aberta como novelas, seriados e comerciais que atingem a maioria da parcela dos cidadãos brasileiros, influenciam diretamente a sociedade promovendo às vezes, o conceito deturpado e negativo, denegrindo a imagem dos orientais e educando as novas gerações com a visão preconceituosa contra a nossa comunidade.
Somos parte integrante da sociedade brasileira, nascemos, vivemos e contribuímos com muito trabalho para o enriquecimento e desenvolvimento de nossa nação. Ter a presença de atores e artistas orientais em produções de audiovisual em papéis não estereotipados e de forma respeitosa, é o mínimo e o justo que a comunidade oriental brasileira merece em retribuição e gratidão por mais de um século de história em terras brasileiras. Somos brasileiros e exigimos respeito para com todos, independentemente de sua ascendência. A diversidade étnica, social
e/ou de gênero é fundamental e necessária para o crescimento de qualquer cidadão.
Entendemos que, frente às desigualdades existentes, não basta rejeitar as práticas de discriminação, mas sim realizar ações que possam corrigir distorções e aproximar indivíduos. É responsabilidade de cada um de nós brasileiros, promover a igualdade no cotidiano, através de nossos atos, trabalhos e postura. É de extrema importância que os profissionais que atuam diretamente na concepção e produção de obras de audiovisual, tenham a consciência de que a sua criação pode influenciar positivamente a nossa sociedade e difundir a diversidade. Cabe também a nós, artistas orientais brasileiros, fomentar a imagem positiva de nossa comunidade, através de nosso trabalho artístico, para que as futuras gerações possam se olhar com a autoestima de um cidadão brasileiro pertencente a esta nação.
A partir de 01.09.16, O Coletivo Oriente-se divulgará, semanalmente, um vídeo inédito através do Canal do Youtube (www.youtube.com/coletivoorientese) retratando o oriental como cidadão brasileiro, com dilemas, humor, drama e interagindo com outras etnias, afim de promover a diversidade humana!
São Paulo, 31 de agosto de 2016.