Em meio à pressa de quem pega a RSC-101 rumo ao Sul do Estado, pode não haver tempo para as histórias. São necessárias mais de três horas para ir de Capivari do Sul a São José do Norte, onde uma balsa leva os viajantes até o porto de Rio Grande, principal destino da rodovia. Apesar da pressa de quem a percorre, a faixa de terra cercada pela Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico abriga histórias que sobreviveram ao tempo.
O percurso é atravessado por quilombos seculares, tradições açorianas que remetem aos primeiros imigrantes do Estado e rastros de episódios que marcaram a Guerra dos Farrapos, entre 1835 e 1845. Em um trecho do distrito de São Simão, em Mostardas, uma porteira na altura do quilômetro 238 da RSC-101 guarda as memórias do primeiro abrir de olhos de Domenico Menotti Garibaldi, primogênito de Giuseppe e Anita Garibaldi, que teria nascido ali em 16 de setembro de 1840, durante o confronto, aos pés de uma figueira ainda preservada. Território de uma história pouco conhecida, o local fica aberto para visitação de quem passa pela rodovia.
A árvore está localizada na propriedade da família Costa, que acolheu Anita nos dias finais da gravidez de Menotti. Em vias de dar à luz, ela já não tinha condições de seguir as tropas farroupilhas que rumavam a São José do Norte na intenção de conquistar o porto da cidade, então tomada pelas forças do Império. Foi ali, no rancho simples dos Costa, que a farrapa encontrou segurança, ainda que em meio à guerra, para trazer ao mundo o primeiro dos quatro filhos que teve com Giuseppe Garibaldi.
— Acolher a Anita foi um ato de coragem da família Costa — avalia Elma Sant'Ana, geógrafa que se dedica a pesquisar os Garibaldi há mais de três décadas. — Naquela época, o distrito de São Simão pertencia a São José do Norte (Mostardas virou município em 1963). Embora toda a região do Litoral Médio fosse simpatizante da causa farroupilha, a cidade era comandada pelo Império. Então, a partir do momento em que eles dão abrigo para Anita Garibaldi, eles se colocam em risco.
As consequências, de fato, vieram. Nove dias após o nascimento de Menotti, o rancho dos Costa foi cercado pelas tropas imperiais. Para escapar do ataque, ela teria se embretado nas matas da região com o filho nos braços, a cavalo, em cena que originou a famosa pintura Fuga de Anita Garibaldi a Cavalo, de Dakir Parreiras.
Há indícios de que a heroína tenha passado três dias escondida na mata com Menotti, conforme explica o historiador Adilcio Cadorin, fundador do Instituto Cultural Anita Garibaldi:
— Esse episódio demonstra a grande mãe que ela foi. Uma mulher determinada, que nunca abdicou dos seus ideais, mas também nunca abdicou da maternidade. Ela fica três dias na mata se alimentando de plantas e raízes para proteger o filho recém-nascido, até que é resgatada pelo Giuseppe.
Acredita-se que o líder farroupilha tenha chegado ao rancho dos Costa somente 12 dias após o nascimento de Menotti. Isso porque, antes do parto, ele rumou a Viamão no intuito de buscar roupas para o bebê que estava por vir. Foi nesse meio tempo que Anita deu à luz e o cerco ao rancho aconteceu, conforme narra Cadorin. Quando o casal finalmente se reencontrou, partiu atrás das tropas farrapas e não mais voltou ao distrito de São Simão, mas não esqueceu a solidariedade encontrada ali.
Uma carta enviada à família Costa em 1841, com a assinatura de Anita, documenta a gratidão da heroína. Naquele mesmo ano, Giuseppe abandonou o exército farroupilha e seguiu com ela para o Uruguai. Depois, Anita rumou à Itália, onde Menotti cresceu, construiu carreira como militar e político e morreu em 1903. O primogênito dos Garibaldi nunca voltou a pisar na terra onde nasceu, mas deixou rastros que ainda marcam a região.
Orgulho
O contexto do nascimento de Menotti Garibaldi é motivo de orgulho para Antonio Dias Chaves, 71 anos, descendente da família Costa. O agricultor ainda vive na propriedade onde Anita se exilou e se lembra de, na infância, ouvir a história familiar da guerrilheira farrapa que deu à luz naquelas terras.
— No colégio, não falavam nada disso, mas meu avô, meu pai e meus tios sempre falaram dessa guerrilheira que teve o filho na sombra da figueira dos Costa. Depois é que fui entender que a guerrilheira era a Anita Garibaldi — conta o descendente. — Foi uma boa ação que eles tiveram, né? Eu fico orgulhoso.
Apesar de a história atravessar gerações dentro da família Costa, não há registro documental de que Anita tenha dado à luz especificamente sob a figueira. O que se sabe é que o parto de Menotti Garibaldi ocorreu naquela cercania, mas pode ter sido realizado, por exemplo, dentro de um galpão que ficava localizado junto à árvore.
Marisa Guedes, historiadora responsável pela Casa de Cultura de Mostardas, explica que a história de Anita Garibaldi é construída a partir de diferentes narrativas:
— Há a versão que pode ser comprovada pelos registros históricos; a versão que se espalha através da história oral, daquilo que os antigos contavam; e o que foi inventado, fruto de uma tentativa de romantizar a Guerra dos Farrapos e o militarismo.
O detalhe sobre a localização exata do nascimento de Menotti Garibaldi circula entre esses diferentes territórios narrativos. Prevalece, então, a história oral que se perpetuou através da família Costa — de que a guerrilheira farrapa Anita Garibaldi deu à luz aos pés da figueira. A versão é cultuada pela população de Mostardas e carimbada pela prefeitura, que transformou a árvore em ponto turístico da cidade.
Uma placa sinalizando a importância histórica da figueira foi instalada pela administração do município em 1996, sobre uma pedra colocada na raiz do tronco. O local ficou conhecido na cidade como Pedra de Anita e passou a ser visitado por turistas e mostardenses como a servidora pública Luiza da Costa Lemos, a dona Luizinha, moradora de Mostardas que costuma visitar a árvore sempre que possível. Aos 70 anos, ela integra o chamado Grupo das Anitas, que reúne mulheres que se identificam com a história de Anita Garibaldi.
— Ela ter tido o filho dela aqui é um orgulho para a nossa cidade. Eu me sinto muito honrada de saber que nós fizemos parte dessa história, que Anita, Giuseppe e Menotti passaram pelos campos de Mostardas — afirma Luizinha. — Para mim, a Anita representa as mulheres e a nossa luta por igualdade. Eu gosto muito de vir aqui (na árvore) porque é um lugar bonito e de uma energia muito forte. A gente se sente bem de estar aqui.
Andar pelo local é, de fato, uma experiência sui generis. Placas guiam o caminho da porteira da propriedade até a figueira. Chegando lá, vê-se uma árvore de mais de cinco metros de altura cercada por outras vegetações que, juntas, formam uma espécie de bosque, limitando a entrada da luz solar e criando uma ambiência capaz de envolver totalmente quem ali chega. A figueira é tão imponente que faz com que o visitante se sinta pequeno, enquanto o canto dos pássaros que sobrevoam o local abafa qualquer eventual distração.
É impossível estar ali e pensar em outra coisa que não a história testemunhada por aquele pedaço da propriedade dos Costa. Quantas provações Anita Garibaldi não teria passado ali? Como teria sido seu parto? Será que alguém lhe segurava a mão nos momentos de dor? Será que Menotti, o bebê farrapo, choramingou ao abrir os olhos pela primeira vez? Ou teria precisado de uma palmada para induzir o choro? Tantas inquietações surgem que somente depois, já tendo deixado o local, percebe-se a roupa tomada por pega-pegas e as picadas de mosquito pelo corpo.
A natureza deixa suas marcas, mas o ambiente é agradável. Quando a reportagem visitou a figueira, dançarinos do Grupo de Artes Nativas Anita Garibaldi, de Encantado, também excursionavam por ali. Valéria Maria Bertamoni Belotti, patroa da entidade, arrependeu-se de não ter levado cadeiras e chimarrão para confraternizar. Sentiu-se à vontade no local.
— A gente fica imaginando quantas vivências esse lugar abrigou. Dá uma emoção e uma vontade louca de ficar mais tempo aqui, de passar horas embaixo dessa árvore — diz Valéria. — Para um grupo como o nosso, que carrega o nome de Anita Garibaldi há 30 anos, é muito significativo e muito forte pisar nesse local. É surpreendente como ver uma expressão concreta da história que a gente conhece pelos livros.
A intenção do município de Mostardas é deixar cada vez mais pessoas surpresas. A cidade guarda riquezas culturais ímpares e trabalha para mostrar ao restante do Estado os seus atrativos, que vão muito além da história em torno do nascimento de Menotti Garibaldi. Mas este é um excelente ponto de partida. Após a visita à figueira, vale estender o percurso até a Casa de Cultura do município, aberta de segunda a sábado, das 9h às 17h, e descobrir os demais tesouros escondidos na cidade de 12 mil habitantes.