A água está baixando no Quarto Distrito de Porto Alegre e, com isso, os estragos dos locais atingidos começam a ser descobertos. Um destes espaços é o centro cultural Vila Flores, que recebe mais de cem artistas e empreendedores. Na construção, formada por dois prédios e um galpão, quase centenários — datados de 1928 —, o nível da inundação chegou a 1m60cm.
Com este cenário, nesta quarta-feira (22), os vileiros, como são chamados os ocupantes do ecossistema, começaram um mutirão de limpeza para colocar o espaço em funcionamento novamente. Todos os nove apartamentos que estão no térreo, em que funcionam empreendimentos dos mais variados, foram afetados, bem como o galpão, que serve como um centro cultural.
No pátio do Vila Flores, neste primeiro dia de limpeza, estão espalhadas desde móveis e eletrônicos até roupas e esculturas, seja de vidro, de cerâmica ou de materiais reciclados. Em comum: todos os itens cobertos por lama, assim como o chão. Por ali, lava-jatos estão funcionando o tempo todo, tentando vencer a sujeira deixada pela inundação. Quem não tem os aparelhos em mãos, trabalham com rodos, puxando para os ralos a podridão que tomou conta daquele espaço de criatividade.
Entre aqueles que trabalhavam arduamente na tarde desta quarta, estavam João e Samantha Wallig, proprietários do local e membros da Associação Cultural Vila Flores. O casal, que fundou o espaço há 10 anos, agora, lamenta a subida da água e o estrago deixado pela tragédia, principalmente pela história do conjunto de edificação, projetada pelo arquiteto Joseph Lutzenberger (1882–1951), na esquina das ruas Hoffmann e São Carlos, no bairro Floresta. A região também está coberta por lodo, com muitas poças e sujeira no entorno.
— Desde o início, entendemos que este era um espaço importante historicamente para a cidade e a gente sempre trabalhando de maneira coletiva, com foco na regeneração do que já tinha. Não queríamos chegar, destruir tudo e construir do zero. Era reaproveitar o que tinha e não gerar mais lixo, sem criar demandas que precisasse que a gente tivesse que buscar em outros lugares. Essa é a alma deste negócio, a sustentabilidade e, agora, vemos ele assim devido ao descaso — lamenta Wallig.
Nas janelas dos empreendimentos no térreo, é possível ver aonde a água chegou. A portas, todas feitas a partir de materiais reaproveitados, bem como bancos de madeira e, até mesmo, o pórtico do pátio — onde já foram realizados diversos casamentos, inclusive — ficaram total ou parcialmente submersos. E, como a água entrou em todos os espaços do térreo, isto impossibilitou o uso do resto dos prédios, com todos os membros da comunidade sem poderem trabalhar. Entretanto, João Felipe Wallig, arquiteto da reforma do Vila Flores, acredita que as edificações, que também foram afetadas pela enchente de 1941, seguem resistentes.
— Estamos fazendo observações e avaliações constantes. A gente tem a volta de luz só em uma parte, onde conseguimos fazer algumas ligações para ligar equipamentos para recuperação. Sobre danos estruturais, ainda precisa ser mesurado, mas a gente tem o apodrecimento de reboco, todas as portas de madeira estão numa situação bastante deplorável, as janelas incharam e mofaram e, também, tem mofo subindo pelas paredes. Mas, aparentemente, todos os lugares que a gente acessou continuam íntegros — destaca João Felipe, que também é diretor da Associação Cultural Vila Flores.
As perdas
Mesmo com a delicada situação do espaço, todos os artistas e empreendedores que compõem o ecossistema cultural estão engajados na reconstrução do espaço — até os que não tiveram seus apartamentos inundados estão colocando a mão na lama. Ali, toda a comunidade se une em prol da coletividade, conforme José Wallig já havia detalhado.
Tanto é verdade que o ateliê de Daniela Malfatti, no qual ela trabalha sozinha, fazendo peças decorativas, utilitários, vitrais e esculturas em vidro, estava movimentado, com pessoas ajudando a recompor o espaço — este apoio é essencial para que o empreendimento possa, tão logo, voltar às atividades. Porém, o processo será longo e ela prevê que, em menos de dois meses, será difícil conseguir voltar ao trabalho.
— Eu tenho dois fornos, que são especiais para vidro, que ficaram submersos. São a minha ferramenta principal de trabalho. Eu uso 850 graus para modelar o vidro. Atualmente, nem sei quanto custaria cada um, porque comprei há 18 anos e paguei R$ 7 mil cada. Eu tenho esperança de recuperar eles, vou tentar lavar a parte elétrica, os componentes eletrônicos. Mas estão comprometidos. Talvez, tenha que fazer uma reforma bem grande — explica a vidreira e designer.
Ela, que faz parte do ecossistema Vila Flores há três anos e meio, também conta como foi ver o seu empreendimento depois da inundação:
— Foi desesperador. Eu não imaginava como que ia estar aqui dentro, mas, quando entrei, foi surreal. A força que a água tem, né? Tinha coisas espalhadas por tudo. Parecia que tinha ocorrido uma explosão aqui. Primeiro, tem esse impacto de ver e, agora, é a esperança para reconstruir tudo. A maioria das obras, pelo menos, eu vou conseguir salvar.
Adriana Santos, educadora de artes manuais, também possui um ateliê no térreo do Vila Flores, o Clube Invencionices. Ela lamenta que tenha perdido, com a enchente, toda a matéria-prima de seu trabalho, especialmente os tecidos, que ficaram impregnados com a água suja que subiu no espaço.
— Acho que vou conseguir, pelo menos, resgatar as máquinas de costura. Tenho quatro. A gente tem como lavar, mas precisamos trocar peças, porque já tem algumas enferrujando, porque ficou muito tempo debaixo d'água. Só de limpeza, acho que vão ser umas duas semanas. E temos o problema que parte do nosso piso é de madeira antiga, restaurada. A água levantou a madeira, inchou. Não tem como salvar. Essa vai ter que ser toda trocada toda. Tem gente aqui pensando em três meses para conseguir retomar. Eu, antes de um mês, não vou conseguir fazer nada, porque não tenho as máquinas — conta Adriana.
Ela também revela que ainda não tem ideia de quanto será o seu prejuízo, porque sequer conseguiu pensar nesta questão:
— Na verdade, ainda estou em estado de choque. As pessoas ficam me oferecendo recursos, mas eu não sei nem por onde começar.
Para acelerar a reconstrução, a Associação Cultural Vila Flores está aceitando doações por meio do Pix 20.991.804/0001-07 (CNPJ).